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Friday, 13 February 2009

O Grito Manso - Paulo Freire

PAULO FREIRE
O GRITO
MANSO

Tradução do espanhol: Leonardo Calderoni
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ÍNDICE
Trabalhar com a gente.................................................................................03
A construção da própria existência.............................................................05
Feliz e desafiado..........................................................................................07
Prática da pedagogia crítica.........................................................................09
Elementos da situação educativa.................................................................13
A luta não acaba, se reinventa.....................................................................18
A confrontação não é política senão pedagógica........................................21
O conhecimento como mercadoria,
A escola como shopping,
Os docentes como proletários......................................................................24
De onde, como, com quem, com que valores?............................................28

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TRABALHAR COM A GENTE
Breve biografia de Paulo Freire
Escrever uma biografia é uma tarefa insalubre. Apresenta contradições às vezes insuperáveis:
não cair em lugares-comuns, não exagerar na nota, não fazer recortes subjetivos, não obviar
questões importantes. E muito mais se se trata de alguém que, como Paulo Freire, morreu e ao
mesmo tempo continua vivo.
Vituperado pelos extremos ideológicos, se afirmou no trabalho com a gente e da gente. Ali
encontrou sua verdade e a sustentou sem hesitar durante toda a sua vida.
Figura paradigmática dos anos 70, suas práticas e seu pensamento foram um refugio prazeroso e
desafiante para milhares de latino-americanos, não só no âmbito da educação, senão também no
das lutas sociais e políticas.
Em menos de três anos, relembrava o sociólogo brasileiro José Carlos Barretto, constituiu na
sua pátria cerca de 3.000 círculos de cultura onde a gente aprendia a ler e escrever a partir da
sua própria realidade.
Comoveu às estruturas do poder. Foi convidado para ir a São Paulo e a partir dali sua figura
começou a emergir e transcender a nível mundial.
Ainda hoje surpreendem a complexidade e ao mesmo tempo a simplicidade de seu pensamento,
sua contundência e sua profunda humildade.
São inumeráveis os livros, em todos os idiomas, que sobre ele se escreveram. Não devem haver
muitos autores contemporâneos capazes de igualar essa produção.
O longo exílio ao que foi obrigado pela ditadura de seu país, através da Bolívia, Chile, Estados
Unidos e Europa, o levou a novas experiências e aprendizagens que foi devolvendo em novas
obras, muitas delas ainda inéditas para o publico em geral.
Seu retorno ao Brasil, uma vez restabelecida a democracia, marcou um fato histórico, com uma
multidão recebendo ele no aeroporto, fato inédito para uma figura intelectual.
Tinha o dom da palavra. Nas palavras de Barretto, quando Paulo falava, um duende que
cativava o entendimento e os corações emergia de sua boca.
Outro dom o aproximava da gente comum: escrevia da mesma forma que falava.
O revival do modelo conversador surpreendeu na ultima etapa de sua vida. Como era de esperar,
se entrincheirou, apresentou batalha. Fez uma lúcida leitura do contexto vigente e reivindicou os
princípios reitores, que adaptados ao longo do tempo, o acompanharam a vida inteira.
Isso produz rancor, tanto entre antigos seguidores e companheiros de luta que começaram a
envolver-se com as propostas do modelo capitalista, como nas esquerdas ortodoxas que desta
maneira viam questionados os seus dogmas.
Colocar-se ao serviço dos mais necessitados, e a partir dali construir, não uma mera
metodologia, senão uma proposta revolucionária que tem a ver com a vida e com afrontar as
mudanças do mundo, sem preconceitos, mas com integridade, incomodou esses setores e o
poder. Como reação, decidem declará-lo .fora de moda., enquanto a direita tenta a impossível
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tarefa de cooptá-lo e incorporá-lo ao sistema, despojando suas teorias de todo aspecto
conflituoso.
Por isso, sua insistência ao dizer em São Luis: .Paulo Freire não foi, continua sendo..
Sua presença entre nós marcou a historia educativa de nossa Universidade e da Província.
Quando, com o Decano da Faculdade de Ciências Humanas, Lic. German Arias, pensamos em
convidá-lo, fomos descartando diferentes salões sabendo que chegaria gente de todo o país.
Finalmente, recorremos a um estádio esportivo, mas nem ele, nem nenhum de nós pôde prever o
que ia acontecer. Três mil e quinhentas pessoas compareceram em respeitoso silencio para
escutar ao .velinho. educador, transformando o ato de aprender e ensinar em uma experiência
única, impossível de explicar com palavras.
Por isso este livro.
Paulo vive. Pelo menos nós o sentimos um passageiro estável do .Quirquincho., o ônibus da
Universidade Trashumante, que no momento de escrever estas linhas, percorre .coletivamente.
a Patagônia.
Tomara que algum dia nossa palavra e nossa militância se pareçam às suas.
Roberto Iglesias
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A CONSTRUÇÃO DA PRÓPRIA EXISTÊNCIA
Pelos coordenadores Orlando Balbo e Augusto Bianco
• As primeiras letras aprendeu da sua mãe, seguindo as evoluções de uma raminha sobre
a terra. Do seu pai tomou a voz, a harmonia. .Pai . pedia à noite . toca violão bem
baixinho e canta, pra eu dormir...
• Concebeu sua vida ligada somente à possibilidade de mobilizar o auto-conhecimento e
o respeito entre os homens.
• Devindo predicador manso e tenaz contra a intimidação, a humilhação, a
desqualificação e a risada solta com intenção vexatória.
• Compreendeu que falar no difícil ou no negativo é outra das formas de exclusão.
• Sempre tolerante, valorizou os costumes, as crenças, a sabedoria popular, mas quando
teve que criticar criticou, sem nunca levantar a voz, sem jamais usar uma palavra forte.
• Quando não soube, o disse, e quando se equivocou se retratou.
• Introduziu aos analfabetos pelos labirintos do conhecimento como primeiro passo para
alargar o horizonte do mundo, recuperar a dignidade e construir a esperança.
• Aceitou honras, mas renegou as tarimbas e os estrados para não distorcer percepções e
dizeres.
• Longe por igual da ironia e do desalento, escreveu obras claras e rotundas, simples e
sugestivas, abertas, sempre sem terminá-las completamente para deixar ao leitor o
prazer de navegá-las.
• Até os livros que lia, os lia através das pessoas e das coisas, nunca ao contrario.
• Sabia que o povo é povo quando empurra, não quando segue.
• Perseguido pelas ditaduras, cruzou mares, continentes, democracias e guerras de
liberação. Deu batalha em muita trincheira, caiu abaixo da sola de suas sandálias, sem
descartar sequer o árido feudo de Rodríguez Saá.
• Não há constância de que tenha conhecido a obra dos sulistas Carlos Vergara, Jesualdo,
Luis Iglesias, Olga Cosettini, mas compartilhou com eles idêntica paixão pela dignidade
da pessoa, pela fé nas suas possibilidades, prestando especial atenção aos renegados do
sistema.
• Numa época de grandes paixões, nos ensinou o respeito, a generosidade, a irmandade
entre todos os homens de boa vontade. A contrapelo do nosso destino sul-americano,
semeou nessa terra a delicada flor da tolerância.
• Talvez não o escutamos bastante. Ou o escutamos tarde... Ou talvez, aquilo fosse
inevitável.
• Disse: .Das anônimas gentes, das sofridas gentes, exploradas gentes, aprendi que a paz
é fundamental, indispensável. Contudo a paz implica em lutar por ela. A paz se cria, se
constrói em e pela superação de realidades sociais perversas. A paz se constrói na
construção incessante da justiça social. Por isso não acredito em nenhum esforço, por
mais que se auto-titule .educação para a paz. que, ao invés de revelar as injustiças do
mundo, as torne opacas e tente miopizar suas vitimas.. 1
• Encurralado pela reificação neoliberal, não cedeu um passo, mesmo ao custo de ficar
pregando no deserto.
• Nessa época marcada pelo arrivismo e o desalento cultivados ad hoc pelo poder, brilha
como nunca a permanente novidade de sua coerência.
• .Não posso materializar meu sonho se não ajo . chamou à atenção em Buenos Aires em
1993. A esperança não existe na pura espera. Além de fazer o mundo com minha práxis
ao lado de outras práxis, não há como ter esperança... Chega um momento em que a
esperança é já a transformação... a pedagogia da esperança deve tornar-se pedagogia da
indignação.. 2
• Contou, quando, já maior, regressou à casa de sua infância: .Voltei a ver as arvores da
minha infância. Eram para mim como pessoas, tal a intimidade que nos unia. Estive a
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ponto de abraçar seus grossos troncos que na minha infância foram jovens... Uma suave
e tranqüila nostalgia emana da casa, a terra, os dormitórios, o pátio, meu .primeiro
mundo., o objeto da minha primeira .leitura... 3
Quase em termos piagetianos explica: .Os textos, as palavras e as letras dessa primeira
leitura estavam encarnados no canto dos pássaros, o trovão, os relâmpagos, a água de
chuva criando charcos e arroios, o movimento das ramas, a cor do céu em movimento,
as fragrâncias, meu medo dos fantasmas, os sons que se acentuam no profundo silencio
da noite... A medida que me familiarizava com minha realidade e a compreendia, meus
temores diminuíam... Decifrar a realidade foi algo que emergeu com naturalidade dessa
.leitura.. Minha lousa foi o solo, minhas raminhas, os gizes.. 3
Se chamava Paulo Freire.
Nasceu em Recife em 19 de setembro de 1921.
Se doutorou em Filosofia e Historia da Educação.
Teve cinco filhos.
Sofreu prisão e perseguição política.
Seus livros tiveram a altíssima honra de serem queimados e proibidos por diversas
ditaduras.
Teve uma vida plena em uma época fervente e formosa, que contribuiu a embelezar.
Época de autores, que não só permitia ter sonhos, senão compartilhá-los e levá-los à
prática.
Morreu sem morrer em 2 de maio de 1997.*
1 Paulo Freire ao receber o Premio .Educação para a paz. da Unesco . Paris . 1986.
2 Paulo Freire Interrogantes e propostas em Educação. Edic. Cinco . Pág. 18 . Bs. As. . 1995.
3 Texto composto a partir de Paulo Freire e Donaldo Macedo Alfabetização . Pág. 51 e seg. . Paidos .
Barcelona . 1989.
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FELIZ E DESAFIADO
(Palavras pronunciadas na Universidade de São Luis em agradecimento pela entrega do titulo HC)
Minhas primeiras palavras, cheias de gratidão vão dirigidas a Nélida Esther Picco, a reitora da
Universidade, a Germán Arias, Decano da Faculdade de Ciências Humanas e sobretudo ao
professor .Tato. (Roberto Iglesias) a quem aprendi a gostar há anos a partir de sua longa
permanência em São Paulo onde nos víamos quase todos os dias, conversávamos e
trabalhávamos juntos. Desde então, foi sempre uma alegria para mim ter noticias suas, que me
estimulavam por sua persistência e sua vontade, à que me somo, de mudar o mundo.
Antes de tudo, gostaria de pedir desculpas porque faz algum tempo que não falo meu portunhol
e estou tendo um pouco de dificuldade para reencontrar o exercício de uma língua que não é a
minha. Alguns pensam que o espanhol é português mal falado, ou que o português é espanhol
mal falado, mas não, são duas línguas diferentes. Me convenci disso no Chile, quando meu filho
mais novo, depois de me ter escutado dar uma aula, me disse: .Puxa pai, como continua falando
mal o espanhol.. E estava certo. Mas agora pouco a pouco estou retomando minha experiência
de falar portunhol.
Como agradecer a vocês que se reuniram aqui nesse momento de festa, de carinho, de
homenagem? Uma possibilidade, que descarto de antemão, seria aproveitar este encontro
fraternal para infligir-lhes uma conferência acadêmica. Pegar o microfone e falar uma hora e
meia sobre os valores da educação. Seria horrível, mesmo quando as conferências acadêmicas
são necessárias, fundamentais. Se não fosse pelas conferências acadêmicas não estaríamos aqui.
Minha posição não é de rejeição à academia, porque de alguma maneira somos acadêmicos. O
que não somos é academicistas. Todas as coisas têm o seu tempo, sua oportunidade e acredito
que este não é o momento para uma conferência acadêmica, embora sim para uma conversa
séria, como sérias foram as palavras que escutamos anteriormente. Outra possibilidade seria
pegar o microfone, dizer .muito obrigado, foi um prazer. e me mandar. Isto, além de má
educação, seria uma atitude agressiva, pretensiosa e arrogante que obviamente também rejeito.
Dessa maneira, vou preferir dizer algumas palavras como modo de agradecimento, de
reconhecimento, do que significa para mim, para Nita, uma festa como esta, em quanto a
desafio, em quanto a responsabilidade. E dizer-lhes também que fatos como este me enchem de
alegria. Eu gosto disto. Para que uma pessoa diga que se sente mal com festas como esta é
preciso que esteja doente ou seja mentirosa. Sempre digo que me sinto uma pessoa intensamente
carente e acredito que uma de minhas melhores virtudes é este sentimento de carência, de
necessidade do outro. Jamais me senti bastando-me a mim mesmo. Preciso dos outros. E é
talvez por isso que posso entender que os outros também precisem de mim. Esta festa, esta
quantidade de gente, as palavras que escutei, tudo isto não me dá o direito à arrogância, mas
sim, a me sentir contente, feliz. Inclusive diria: que venham outros doutorados! Digo isto com
simplicidade e sem vergonha porque me sinto desafiado. Quantas mais homenagens como esta
receba, mais sinto o dever de ser responsável. O doutorado Honoris Causa não é dado a
qualquer um. É dado por algo. É necessário saber se se justifica do ponto de vista do respeito à
verdade, à historia, à ciência, do ponto de vista ético. Em um mundo em que há tão pouca
vergonha, é preciso saber se a universidade que outorga um doutorado está ou não cometendo
um erro. Pois bem, eu estou convencido de que a universidade não esta cometendo um erro ao
me homenagear. E digo isto porque tenho horror à falsa modéstia. Para mim a falsa modéstia é
pior que a imodéstia. Quando jovem escutava um orador que começava dizendo: .não deveria
ser eu quem estivesse aqui, senão alguém mais competente que eu., sempre me perguntava:
.por que não vai embora?. Entendo esta festa como um chamado à minha responsabilidade. Da
mesma maneira que a universidade reconhece hoje algo do que fiz, da mesma maneira pode
retirar simbolicamente o doutorado no dia de amanhã se traio meu passado e meu presente e me
desdigo. Eu busco minha força mais no reconhecimento que me dá a universidade que em mim
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mesmo. Busco em vocês a força que necessito para não trair os princípios que levaram a
universidade a me homenagear. Quando digo: bem-vindos os doutorados, o digo porque quantos
mais doutorados tenha, mais humildemente responsável me sentirei. Por tudo isto, lhes
agradeço. Apreciei muito a referencia que fizeram à Pedagogia da esperança. Estou nos meus
setenta e cinco anos com alguma dificuldade do ponto de vista do corpo. Estou atravessando
uma espécie de desconexão do corpo e da mente, como se minha mente tivesse vinte e cinco
anos e o corpo setenta e cinco, e sabendo antecipadamente que o corpo não poderá acompanhar
à mente. Vocês não sabem o que significa ter vontade de fazer algo e não ter os recursos para
fazê-lo, como, por exemplo, trabalhar de noite. Já quase não posso fazê-lo. Para concluir, quero
dizer-lhes que como educador, como político, como homem que pensa a prática educativa, sigo
profundamente esperançado. Rejeito o imobilismo, a apatia, o silencio. Digo em meu ultimo
livro, que está sendo traduzido agora em México., que não estou esperançado por capricho
senão por ímpeto da natureza humana. Não é possível viver plenamente como ser humano sem
esperança. Conversem a esperança.
Muito obrigado
. Pedagogia da autonomia . Siglo XXI . México . 1997.
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PRÁTICA DA PEDAGOGIA CRÍTICA
(Primeira parte do seminário-oficina)
Antes de tudo, quero agradecer esta demonstração de afeto, de gente que vem de longe, viajando
horas, mesmo sabendo que o tempo que temos a disposição é escasso.
Esta tarde vamos tratar do tema da prática educativa, de como viemos compreendendo ou
tentando compreender esta prática, nosso compromisso com a vida e o mundo.
Antes de tudo, não é possível exercer a tarefa educativa sem nos perguntarmos, como
educadores e educadoras, qual é nossa concepção do homem e da mulher. Toda prática
educativa implica esta indagação: o que penso de mim mesmo e dos outros. Faz tempo, em
Pedagogia do Oprimido analisei o que ali denominava a busca do ser mais. Nesse livro defini o
homem e a mulher como seres históricos que se fazem e se refazem socialmente. É a
experiência social a que em ultima instancia nos faz, que nos constitui como estamos sendo.
Gostaria de insistir neste ponto: os homens e as mulheres, como seres históricos, somos seres
incompletos, inacabados ou inconclusos. A inconclusão do ser não é, contudo, exclusiva da
espécie humana já que abarca também a cada espécie vital. O mundo da vida é um mundo
permanentemente interminado, em movimento. Todavia, em determinado momento de nossa
experiência histórica, nós, mulheres e homens conseguimos fazer de nossa existência algo mais
do que meramente viver. Em certo sentido, os homens e as mulheres inventamos o que
chamamos a existência humana: nos pusemos de pé, liberamos as mãos e a liberação das mãos é
em grande parte responsável pelo que somos. A invenção de nós mesmos como homens e
mulheres foi possível graças a que liberamos as mãos para usá-las em outras coisas. Não temos
data desse evento, que se perde no fundo da história. Fizemos essa coisa maravilhosa que foi a
invenção da sociedade e a produção da linguagem. E foi aí, nesse preciso momento, no meio
desse e outros .saltos. que demos, que mulheres e homens alcançamos esse momento
formidável que foi compreender que somos interminados. As arvores ou os outros animais
também são interminados, mas não se sabem interminados. Os seres humanos ganhamos nisto:
sabemos que somos inacabados. E é precisamente aí, nesta radicalidade da experiência humana,
que reside a possibilidade da educação. A consciência do inacabamento criou o que chamamos a
.educabilidade do ser.. A educação é, então, uma especificidade humana.
Este inacabamento consciente de si, é o que nos vai permitir perceber o não-eu. O mundo é o
primeiro não-eu. Tu, por exemplo, és um não-eu de mim. E a presença do mundo natural como
não-eu, vai atuar como um estimulo para desenvolver o eu. Nesse sentido, é a consciência do
mundo que cria a minha consciência. Conheço o diferente de mim e nesse ato me reconheço.
Obviamente, as relações que começaram a estabelecer-se entre o nós e a realidade objetiva
abriram uma série de interrogantes, e esses interrogantes levaram a uma busca, a uma tentativa
de compreender o mundo e compreender nossa posição nele. É nesse sentido que eu uso a
expressão .leitura do mundo. como precedente à leitura das palavras. Muitos séculos antes de
saber ler e escrever, os homens e as mulheres estavam inteligendo o mundo, captando-o,
compreendendo-o, .lendo-o.. Essa capacidade de captar a objetividade do mundo, provem de
uma característica da experiência vital que nós chamamos curiosidade. Se não fosse pela
curiosidade, por exemplo, (não) estaríamos aqui hoje. A curiosidade é, junto com a consciência
do inacabamento, o motor essencial do conhecimento. Se não fosse pela curiosidade, não
conheceríamos. A curiosidade nos empurra, nos motiva, nos leva a desvendar a realidade
através da ação. Curiosidade e ação se relacionam e produzem diferentes momentos ou níveis de
curiosidade. O que procuro dizer, é que em determinado momento, empurrados por sua própria
curiosidade, o homem e a mulher em processo, em desenvolvimento, se reconheceram
inacabados e a primeira conseqüência disso é que o ser que se sabe inacabado entra em um
permanente processo de busca. Eu sou inacabado, a arvore também é, mas eu sou mais
inacabado que a arvore porque o sei. Como conseqüência quase inevitável de saber que sou
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inacabado, me inserto em um movimento constante de busca, não de busca pontual de isto ou
aquilo, senão de busca absoluta, que pode me levar à busca de minha própria origem, que pode
me levar a uma busca do transcendental, à busca religiosa que é tão legitima como a busca não
religiosa. Se há algo que contraria a natureza do ser humano é a não busca e por tanto a
imobilidade. Quando digo imobilidade, me refiro à imobilidade que há na mobilidade. Alguém
pode ser profundamente móvel e dinâmico mesmo estando fisicamente imóvel e vice-versa.
Dessa maneira, quando falo disto, não falo da mobilidade ou imobilidade física, falo da busca
intelectual, da minha curiosidade em torno de algo, do fato de que possa buscar mesmo quando
não encontre. Por exemplo, eu posso passar a vida em buscas que aparentemente não são grande
coisa e, contudo, o fato de buscar é fundamental para minha natureza de ser buscador. Agora,
não há busca sem esperança, e não há porque a condição do buscar humano é fazê-lo com
esperança. Por esta razão, sustenho que a mulher e o homem são esperançados, não por
obstinados, senão como seres buscadores. Esta é a condição do buscar humano: fazê-lo com
esperança. A busca e a esperança formam parte da natureza humana. Buscar sem esperança,
seria uma enorme contradição. Por esta razão, a presença de vocês no mundo, a minha, é uma
presença dos que andam e não dos que simplesmente estão. E não é possível andar sem
esperança de chegar. Por isso, não é possível conceber um lutador desesperançado. O que sim
podemos conceber são momentos de desesperança. Durante o processo de busca, há momentos
em que alguém se detém e se diz a si mesmo: não há o que fazer. Isto é compreensível,
compreendo que se caia nessa posição. O que não concordo é que permaneça nessa posição.
Seria como uma traição a nossa própria natureza esperançada e buscadora.
Essas reflexões que estamos fazendo têm como objetivo falar sobre os marcos essenciais da
nossa prática educativa. Como posso educar sem estar envolvido na compreensão critica da
minha própria busca e sem respeitar a busca dos alunos? Isto tem a ver com a cotidianidade da
nossa prática educativa como homens e mulheres. Sempre digo homens e mulheres porque
aprendi há muitos anos, trabalhando com mulheres, que dizer somente homens é imoral. O que
é a ideologia! De criança, na escola, aprendi outra coisa: aprendi que quando se diz homem se
inclui também à mulher. Aprendi que em gramática o masculino prevalece. Ou seja, se todas as
pessoas aqui reunidas fossem mulheres, mas aparecesse somente um homem, eu deveria dizer
.todos. vocês e não .todas. vocês. Isto, que parece uma questão de gramática obviamente não
é. É ideologia e eu levei um tempo para compreender. Já havia escrito Pedagogia do Oprimido.
Leiam vocês às edições em espanhol dessa obra e verão que esta escrita em linguagem machista.
As mulheres norte-americanas me fizeram compreender que eu havia sido deformado na
ideologia machista.
Voltando ao tema: é impossível, a não ser de cair no desespero, deixar de buscar e, portanto
deixar de ter esperança. Dizia-lhes também que outro marco fundamental da prática educativa é
a inconclusão, dado que é nessa inconclusão que o ser humano se torna educável. Todo
educando, todo educador se descobre como ser curioso, como buscador, indagador inconcluso,
capaz, contudo, de captar e transmitir o sentido da realidade. É no próprio processo de
inteligibilidade da realidade que a comunicação do que foi inteligendo se torna possível.
Exemplo: no momento mesmo que compreendo, que raciono como funciona um microfone, vou
poder comunicá-lo, explicá-lo. A compreensão implica a possibilidade de transmissão. Em uma
linguagem mais acadêmica diria: a inteligibilidade fecha em si mesma a comunicabilidade do
objeto inteligido.
Uma das tarefas mais belas e gratificantes que temos por diante como professores e professoras
é ajudar os educandos a constituir a inteligibilidade das coisas, ajudá-los a aprender a
compreender e a comunicar essa compreensão aos outros. Isto nos permite intentar uma teoria
da inteligibilidade dos objetos. Isto não quer dizer que a tarefa seja fácil. O professor ou a
professora não têm o direito de fazer um discurso incompreensível em nome da teoria
acadêmica e dizer depois: que se virem. Mas tampouco têm que fazer conceições baratas. Sua
tarefa não é fazer simplismo porque o simplismo é irrespeitoso para os educandos. O professor
simplista considera que os educandos nunca estarão à altura de compreendê-lo e então reduz a
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verdade a uma meia verdade, ou seja, a uma falsa verdade. A obrigação de professores e
professoras não é cair no simplismo porque o simplismo oculta a verdade, senão a de ser
simples. O que nós temos de fazer é conseguir uma simplicidade que não minimize a seriedade
do objeto estudado senão que a ressalte. A simplicidade faz inteligível o mundo e a
inteligibilidade do mundo traz consigo a possibilidade de comunicar essa mesma
inteligibilidade. É graças a esta possibilidade que somos seres sociais, culturais, históricos e
comunicativos. Por esta razão, o quebre da relação dialógica não é só o quebre de um principio
democrático, senão que é também o quebre da própria natureza humana. As professoras e os
professores democráticos intervimos no mundo através do cultivo da curiosidade e da
inteligência esperançada, que se desdobra na compreensão comunicante do mundo. E fazemos
isto de diferentes maneiras. Intervimos no mundo através de nossa prática concreta, intervimos
no mundo através da responsabilidade, através de uma intervenção estética, cada vez que somos
capazes de expressar a beleza do mundo. Quando os primeiros humanos desenharam nas
cavernas figuras de animais, já intervinham esteticamente sobre o mundo, e como seguramente
já tomavam decisões morais, também intervinham de maneira ética. Justamente na medida em
que nos tornamos capazes que intervir, capazes de mudar o mundo, de transformá-lo, de fazê-lo
mais belo ou mais feio, nos tornamos seres éticos. Até hoje jamais se soube que, por exemplo,
um grupo de leões africanos atirasse bombas sobre cidades de leões asiáticos. Não soubemos até
hoje da existência de algum leão que matasse com premeditação. Somos nós, os humanos, os
que fazemos estas coisas. Somos nós os que matamos e que assassinamos homens como
Mauricio López a quem eu conheci e cuja ausência tanto sinto e por quem tenho respeito,
admiração e saudade. Não foram elefantes os que o fizeram desaparecer Mauricio e tantos
outros, foram homens deste país que agiram provavelmente com a cumplicidade de alguma
presença gringa. Só os seres que alcançaram a possibilidade de ser éticos se tornam capazes de
trair a ética. A tarefa fundamental de educadores e educadoras é viver eticamente, praticar
a ética diariamente com as crianças e os jovens, isto é muito mais importante que o tema de
biologia, se somos professores de biologia. O importante é o testemunho que damos com nossa
conduta. Inevitavelmente cada aula, cada conduta é testemunho de uma maneira, ética ou não,
de afrontar a vida. Como trabalho na classe? Como trabalho com meus alunos a eterna questão
da inconclusão, da curiosidade? Como trabalho o problema da esperança encurralada pela
desesperança? O que eu faço? Baixo os braços? Parto para uma espécie de luta cega, sem saída?
Temos de educar através do exemplo sem pensar que por ele vamos salvar o mundo.Que mal
me faria a mim mesmo e a vocês si pensasse, por exemplo, que vim ao mundo com a missão de
salvá-los. Seria um desastre. Sou um homem igual a todos vocês e como vocês tenho uma tarefa
a cumprir e com isso já é o bastante. O mundo se salva se todos, em termos políticos,
brigarmos para salvá-lo. Há algo que está no ar, na Argentina, no Brasil, no mundo inteiro que
nos ameaça. Esse algo é a ideologia imobilizadora, fatalista, segundo a qual não temos mais
nada o que fazer, segundo a qual a realidade é imodificável. Estou cansado de ouvir frases como
esta: .É terrível, no Brasil há trinta milhões de mulheres, homens e crianças morrendo de fome,
mas o que podemos fazer, a realidade é esta.. Estou cansado de escutar que o desemprego que
se estende pelo mundo é uma fatalidade deste final de século. Nem a fome, nem o desemprego
são fatalidades, nem no Brasil, nem na Argentina, nem em nenhuma parte. Eu pergunto aos
fatalistas, em um livro que estou escrevendo agora: Por que será que a reforma agrária não é
também uma fatalidade no Brasil? Teriam ouvido falar do chamado especulativo do dólar,
bilhões de dólares viajando diariamente pelos computadores do mundo de lugar a lugar
procurando onde rende mais. Isso tampouco é uma fatalidade. É preciso, dizem os lideres
neoliberais, disciplinar estes movimentos especulativos para evitar as crises. Parece que isto sim
se pode fazer. Por que será que quando se vêm afetados os interesses das classes dominantes
não há fatalismo, mas sempre que aparece como por passe de mágica cada vez que afeta às
classes populares? Um dos grandes desafios que temos de afrontar hoje é a confrontação com
esta ideologia imobilista. Não há imobilismos na história. Sempre há algo que podemos fazer e
refazer. Fala-se muito da globalização. Vocês teriam visto que a globalização aparece como
uma espécie de entidade abstrata que se criou a si mesma do nada e frente à qual nada podemos.
É a globalização, ponto. A questão é bem diferente. A globalização só representa um
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determinado momento de um processo de desenvolvimento da economia capitalista que chegou
a este ponto mediante uma determinada orientação política que não necessariamente é a única.
Com o que disse até aqui, tratei de responder à questão de como vejo a prática docente frente à
realidade histórica atual. Disse-lhes que não há prática docente sem curiosidade, sem
incompletude, sem ser capazes de intervir na realidade, sem ser capazes de ser fazedores da
historia e, por sua vez, sendo feitos pela historia. Disse-lhes que uma das tarefas fundamentais,
tanto aqui como no Brasil e no mundo inteiro, é elaborar uma pedagogia critica. E lhes digo
não como alguém que .já foi., lhes digo como alguém que esta sendo. Igual que toda a gente,
eu também estou sendo, apesar da idade. Em função e em resposta a nossa própria condição
humana, como seres conscientes, curiosos e críticos, a prática do educador, da educadora,
consiste em lutar por uma pedagogia critica que nos dê instrumentos para nos assumirmos como
sujeitos da historia. Prática que devera basear-se na solidariedade. Talvez nunca como nesse
momento necessitamos tanto da significação e da prática da solidariedade. Para terminar,
reitero: sigo com a mesma esperança, com a mesma vontade de luta de que quando comecei.
Resisto à palavra .velho., não me sinto velho, em todo caso me sinto utilizado, cheio de
esperanças e vontade de lutar.
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ELEMENTOS DA SITUAÇÃO EDUCATIVA
(Segundo dia do Seminário-oficina)
(Antes de iniciar, Roberto Iglesias anunciou que Paulo Freire não se encontrava muito bem, que falaria
uma hora e logo se retiraria. Na prática, Freire o desmentiria: acabaria falando quase três horas)
Agradeço a compreensão de vocês. Não é somente o trabalho, é a emoção, e a emoção desgasta.
Não é só o encontro com vocês, é a memória. Não é somente pelo que eu fiz ontem, é o que eu
fiz antes de ontem, o que eu fiz no mês passado, é a soma dos meus dias a que vem cansada.
Não é simplesmente questão de apertar um botão e por a memória para funcionar...
Estou contente de perceber que vocês me compreendem. Se pudesse, ficaria o dia inteiro.
Agora, respondendo a uma sugestão de Roberto Iglesias, vou tentar dizer algumas coisas, que
provavelmente vocês já saibam ou adivinhem, sobre o tema da educação e da formação docente.
Gostaria de iniciar com um exercício intelectual, o de pensar na situação que chamamos
situação educativa. A situação educativa não é qualquer situação. Uma situação de almoço, por
exemplo, pode ter em si alguns momentos educativos, mas não é necessariamente uma situação
educativa. Poderíamos pensar em uma situação educativa na casa, na relação entre o pai, a mãe
e os filhos, mas prefiro pensar na relação educativa típica, entre as professoras e os alunos. Não
importa que escola seja, primaria, secundaria, universitária ou circulo de cultura. O que eu quero
fazer é analisar e descobrir com vocês quais são os elementos constitutivos da situação
educativa.
Imaginemos que estamos na classe, que está a professora ou o professor e os alunos. Qual é a
tarefa da professora? Em palavras simples diríamos que a tarefa da professora é ensinar, e a
tarefa dos alunos, aprender.
Vemos então que o primeiro elemento constitutivo da situação educadora é a presença de um
sujeito, o educador ou a educadora, que tem uma determinada tarefa especifica que é a tarefa
de educar.
A situação educativa implica também a presença dos educandos, dos alunos, segundo
elemento da situação educativa.
O que mais descobrimos na prática desta experiência? Em primeiro lugar descobrimos que a
presença do educador e dos educandos não se dá no ar. Educador e educandos se encontram em
um determinado espaço. Esse espaço é o espaço pedagógico, espaço que os docentes muitas
vezes não tomam na devida consideração. Se nós nos detivéssemos a analisar a importância do
espaço pedagógico, passaríamos a manha discutindo, por exemplo, sobre as implicâncias da
falta de respeito dos poderes públicos com respeito a estes espaços. Mesmo com diferenças
entre lugar e lugar, esta é quase uma tradição histórica na América Latina. Quando em 1989 fui
convidado a assumir como responsável pela educação publica da cidade de São Paulo, havia
675 escolas, cerca de um milhão de alunos e 35.000 professores. 60% das 675 escolas estavam
em franco processo de deterioro material. Muitas, na época da informática, não tinham sequer
gizes. Em muitas escolas os banheiros eram absolutamente inutilizáveis, era uma aventura
ingressar a um banheiro. Faltava a merenda escolar, os materiais. Dessa maneira, as condições
materiais do espaço podem ser ou não ser em si mesmas pedagógicas. Como pode a professora,
por mais diligente que seja, por mais disciplinada e cuidadosa que seja, pedir aos alunos que não
sujem a sala, que não quebrem as cadeiras, que não escrevam nas carteiras, quando o próprio
governo, que deveria dar o exemplo, não respeita minimamente esses espaços? Quanto mais a
Direção da escola, a Secretaria de educação, os diferentes centros de poder demonstrem às
crianças e às famílias seu zelo pelo cuidado da escola, por reparar o teto e as paredes, por
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entregar gizes e plantas, tanto mais esta demonstração de respeito educará às crianças.
Disseram-me, não sei se é verdade, que na Administração de trens de São Paulo há um setor
encarregado de tirar diariamente os vagões danificados ou com assentos quebrados. Este setor
tira o carro, o conserta e o devolve imediatamente de maneira que os carros andem sempre
limpos e inteiros. A correção do carro inibe ao destruidor de assentos. Sem dúvidas, há uma
relação entre as condições materiais e nossas condições mentais, espirituais, éticas, etc.
O terceiro elemento constitutivo da situação educativa é, então, o espaço pedagógico. E como
não há espaço sem tempo, então o tempo pedagógico é outro elemento constitutivo da situação
educativa. Lamentavelmente, educadores e educadoras, poucas vezes nos perguntamos: o que
faço com meu tempo pedagógico, como posso aproveitá-lo mais eficientemente. Quase nunca
nos perguntamos: a serviço de quem, de que coisas esta o tempo educativo. E se trata de uma
pergunta fundamental. Obviamente o tempo educativo está a serviço da produção de saber. E
como não há produção de saber que não esteja diretamente ligada ou associada a ideais, a
pergunta que devemos nos fazer é: a serviço de quem, de que ideais produzimos, conjuntamente
com os alunos, o saber dentro do tempo-espaço da escola. E quando alguém se detém sobre este
ponto descobre que o tempo-espaço pedagógico se usa sobre todo contra os interesses das
crianças populares, embora não somente contra eles.
Peguemos como exemplo que as crianças chegam à escola às 8:00. Às 8:15 toca o sinal, as
crianças entram em fila militar, alguns professores ou professoras ainda não chegaram,
lamentavelmente existe isto. Às 8:20 as crianças estão chegando à sala. A professora faz a
chamada, aí vão outros dez minutos. São 8:30 e a professora . nessa caricatura que estou
fazendo . se está cansada não fará nada importante, pois já está pensando que às 10h servem o
lanche. Nesta hora toca o sinal e as crianças saem correndo, gritando e as professoras ficam em
uma sala, não vão ao recreio, deixam de participar desse momento pedagógico riquíssimo que é
o momento em que as crianças estão pondo para fora seus medos, suas raivas, suas angustias,
suas alegrias, suas tristezas e seus desejos. As crianças estão pondo sua alma para fora no
recreio e as professoras na sala, alheias a esta experiência humana essencial! Depois do
recreio se toma o leite e aí vão no mínimo trinta minutos, sem contar outros tempos mortos.
Quando chega o fim do dia, as crianças tiveram, no espaço pedagógico das quatro horas, duas
horas e meia ou três de aula. Perderam uma hora. Esta hora perdida é uma hora de
aprendizagem que não houve. E o pior é que nem sequer discutimos esta perda do tempo para a
produção do saber, porque se o fizéssemos, ao menos haveríamos aprendido algo.
Lamentavelmente, a jornada escolar entra na rotina cotidiana, não se pensa nela, simplesmente
se vive ela. Esta é uma reflexão pendente que raramente se dá nas universidades. O digo com
tristeza. Como professores, como professoras, temos a obrigação de conhecer, de debater, de
analisar estas coisas.
Vimos até aqui que não há situação educativa sem a figura do professor e do aluno que se
encontram em certo espaço ao largo de certo tempo docente. Porém, há algo mais que é
essencial à situação educativa, e esse algo mais são os conteúdos curriculares, os elementos
programáticos da escola, que como professor tenho a obrigação de ensinar e os alunos têm a
obrigação de aprender. Conteúdos que em linguagem mais acadêmica, na teoria do
conhecimento, se chamam objetos cognoscíveis, objetos que os jovens que se formam para ser
professores devem conhecer. Creio que inclusive na prática da educação popular o povo tem
direito a dominar a linguagem acadêmica. E digo isto porque há educadores populares que em
nome da revolução encontram que o correto é romper com a academia. O correto é mudar a
academia e não dar as costas à academia. Nosso problema não é estar contra a academia,
senão refazê-la, colocá-la a serviço dos interesses da maioria do povo. Há que prestigiar a
academia, isto é, colocá-la a serviço do povo. Desde que homens e mulheres inventaram a
vida em comum, os objetos cognoscíveis foram percebidos e estudados através do exercício da
curiosidade. O povo tem direito a saber, necessita saber que os conteúdos escolares se chamam
objetos cognoscíveis, ou seja: objetos que podem ser conhecidos.
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E aqui surge outro tema importante. Os objetos cognoscíveis são percebidos mediante o
exercício da curiosidade. Daí o cuidado que nós como professores devemos ter em relação a
preservar a curiosidade das crianças. Quantas vezes vocês observaram em casas de amigos, ao
pai e à mãe conversando com a visita, de repente a criança de três, quatro anos, vem correndo
com uma pergunta e o pai: calado! Não vê que estou falando com outra pessoa? Como você
vem com essa besteira? Puxa! Meu deus! Não gosto de atirar pedras a ninguém nem criar
sentimentos de culpa, mas esta conduta é absurda. É um comportamento castrador que cerceia
uma das coisas mais importantes que temos que é a curiosidade. Sem curiosidade não teríamos
nem a possibilidade de ser pai ou mãe. Todo tempo educativo é tempo de pergunta e de
resposta, tempo de disciplinar, de regulamentar a própria pergunta, a própria resposta. Uma
tarde, há muitos anos, em Recife, o reitor da Universidade veio a nossa casa para conversar
sobre um problema da Universidade. Estávamos no terraço quando de repente um dos meus
filhos, que devia ter uns quatro ou cinco anos, veio perguntar algo. Parei a conversa, escutei à
criança, lhe respondi e depois lhe disse: olha, teu papai está conversando com um amigo que
também tem perguntas para fazer e que também responde perguntas. Por isso, se você tem outra
pergunta para fazer, te sugiro que a memorize e pergunte depois, assim teu papai pode seguir
conversando com o seu amigo. É preciso defender o direito que tem a criança de perguntar, de
satisfazer sua curiosidade, mas ao mesmo tempo dizer-lhe que há momentos para perguntar e
momentos para abster-se, o que em ética definimos .assumir os limites da liberdade.. Sem
limites não há liberdade, como tampouco há autoridade. A formidável questão que nos surge
aos educadores é como estabelecer os limites, em que consistem realmente, e quais entre todos
eles são os que temos que implementar.
Voltemos agora à questão dos objetos do conhecimento. Quanto mais pensamos o que é ensinar,
o que é aprender, mais descobrimos que não há uma coisa sem a outra, que os dois momentos
são simultâneos, que se complementam, de tal maneira que quem ensina, aprende ao ensinar e
quem aprende, ensina ao aprender. Não casualmente em francês o mesmo verbo significa
ensinar e aprender, o verbo apprendre. A questão é como lidar com esta aparente contradição.
Neste momento, falando com vocês, eu estou reconhecendo estas coisas, estou re-sabendo estas
coisas. Dessa maneira que no processo em que vocês aprendem, vocês me ensinam. Como?
Através do olhar, de suas atitudes. O professor atento, o professor desperto, não aprende
somente nos livros, aprende na aula, aprende lendo nas pessoas como se fossem um texto.
Enquanto lhes falo, eu como docente, tenho que desenvolver em mim a capacidade critica e
afetiva de ler nos olhos, no movimento do corpo, na inclinação da cabeça. Devo ser capaz de
perceber se há entre vocês alguém que não entendeu o que eu disse, e nesse caso tenho a
obrigação de repetir o conceito em forma clara para repor à pessoa no processo do meu
discurso. Em certo sentido, vocês estão sendo agora para mim um texto, um livro que eu preciso
ler ao mesmo tempo em que falo. No Brasil, os bons políticos sabiam fazer isto, sabiam tocar a
sensibilidade de quem os escutava. Agora com a televisão isto está acabando. De maneira que a
prática docente vai além do ato de entrar à classe e dar, por exemplo, a aula de substantivos. A
prática educativa é muito mais que isso.
Voltando ao nosso tema, não há então situação pedagógica sem um sujeito que ensina, sem um
sujeito que aprenda, sem um espaço-tempo em que estas relações se dão e não há situações
pedagógicas sem objetos que possam ser conhecidos. Mas não termina aqui a questão. Há outra
instancia constitutiva da situação educativa, algo que vai além da situação educativa e que,
contudo, forma parte dela. Não há situação educativa que não aponte a objetivos que estão além
da classe, que não tenha a ver com concepções, maneiras de ver o mundo, anseios, utopias. Do
ponto de vista técnico, esta instancia, em filosofia da educação recebe o nome de
direcionalidade da educação. Muita gente confunde direcionalidade com dirigismo, com
autoritarismo. Contudo, a direcionalidade pode viabilizar tanto a posição autoritária como a
democrática, da mesma maneira que a falta de direcionalidade pode viabilizar o espontaneísmo.
É justamente a direcionalidade que explica essa qualidade essencial da prática educativa que eu
chamo a politicidade da educação. A politicidade da prática educativa não é uma invenção dos
subversivos como pensam os reacionários. Pelo contrario, é a natureza mesma da prática
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educativa que conduz o educador a ser político. Como educador eu não sou político porque
queira, senão porque minha própria condição de educador me impõe. Isto não significa ser
partidário deste ou daquele partido, mesmo quando eu considero que todo educador deve
assumir uma posição partidária.
A politicidade é então inerente à prática educativa. Isto significa que como professor devo ter
claras minhas opiniões políticas, meus sonhos. Porque no final, o que é que me move, me anima
como professor, se ganho tão pouco, se estou tão desprestigiado nessa sociedade de mercado?
Que sonho tenho para sonhar, para discutir com meus alunos? A politicidade revela outras duas
características da situação educativa. Revela que na prática educativa, estética e ética vão de
mãos dadas. A prática educativa é bela como é bela formação da cultura, a formação de um
individuo livre. E ao mesmo tempo essa estética é ética, pois trata da moral. Dificilmente uma
coisa bela seja imoral. Isto nos põe frente à necessidade de rejeitar o puritanismo que mais que
ético é hipocrisia e falsificação da ética, da liberdade e da pureza.
Recapitulando então: não há prática educativa sem sujeitos, sem sujeito educador e sem sujeito
educando; não há prática educativa fora desse espaço-tempo que é o espaço-tempo pedagógico,
não há prática educativa fora da experiência de conhecer que tecnicamente chamamos
experiência gnosiológica, que é a experiência do processo de produção do conhecimento em si;
não há prática educativa que não seja política; não há prática educativa que não esteja envolvida
em sonhos; não há prática educativa que não envolva valores, projetos, utopias. Não há então
prática educativa sem ética.
A educação não pode deixar de levar em conta todos estes elementos. Trata-se de uma tarefa
seria e complexa e como tal devera ser afrontada tanto pelos responsáveis das políticas
educativas como pelos próprios docentes. Temos a responsabilidade, não de tentar moldar os
alunos, senão de desafiá-los no sentido de que eles participem como sujeitos de sua própria
formação. Nestes dias estou terminando um livro novo com idéias velhas, onde trato este tema
da formação docente e onde ressalto dois ou três saberes ou máximas que creio que deveriam
formar parte da bagagem de todo professor ou professora. Uma destas máximas, que me
acompanha faz tempo, é a que defende: mudar é difícil, mas é possível. Que testemunho
poderia dar aos jovens se minha posição frente ao mundo fosse a de quem está convencido de
que nada pode ser feito, que nada pode ser mudado? Eu diria que nesse caso é melhor que
abandone o magistério, que tente sobreviver de alguma outra maneira. Ninguém pode dar aulas
sem ter a convicção do que faz. Não pode dizer: eu sou simplesmente um técnico, distante do
mundo, distante da história. Não somente devo dar testemunho da minha vontade de mudança,
senão que ademais devo demonstrar que em mim, mais que uma crença, é uma convicção. Se
não sou capaz de dar testemunho de minhas convicções perco minha base ética e sou um
péssimo educador porque não sei transmitir o valor da transformação.
Outra convicção que considero fundamental, é a que sustem: é preciso aprender a escutar. Há
quem acredite que falando se aprende a falar, quando na realidade é escutando que se aprende a
falar. Não pode falar bem quem não sabe escutar. E escutar implica sempre não discriminar.
Como posso compreender os alunos da favela se estou convencido de quem são sujos, que
cheiram mal? Se sou incapaz de compreender que estão sujos porque não têm água para tomar
banho? Ninguém opta pela miséria. No Rio de Janeiro, um homem que organiza uma das
Escolas de samba do carnaval, disse uma vez uma grande verdade: .Só os intelectuais pequenoburgueses
gostam da miséria. O povo gosta das coisas bonitas.. Obviamente o povo gosta do
bem-estar, aquilo que não pode ter. O que nós devemos querer, não é que o povo siga na
miséria, senão que supere a miséria. Há que brigar para que o povo viva bem, que tenha camisas
como esta, que nos anos setenta seria considerada sinal de burguesia. Há que democratizar as
coisas boas e não suprimi-las. Eu não rejeito as coisas burguesas, senão a concepção burguesa
da vida. Há que superar alguns equívocos do passado, como pensar que a solidariedade com os
oprimidos é uma questão de geografia, que é necessário sair da área elegante da cidade e ir viver
na miséria para então sim ser absolutamente solidário com os oprimidos. Isto nem sempre
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funciona. Aprender a escutar implica não minimizar ao outro, não ridicularizá-lo. Como pode
um professor ter boa comunicação com um aluno ao qual previamente desvalorizou ou
ironizou? Como pode um professor machista escutar uma mulher, ou um professor racista a um
negro? Digo no livro, se você é machista, assuma-se como machista, mas não se apresente como
democrata, você não tem nada a ver com a democracia. Se, por outro lado, você insiste com os
sonhos democráticos, então vai ter que pensar em ir superando seu machismo, seu classismo,
seu racismo. Nos Estados Unidos acabam de queimar igrejas de negros como se os negros em
primeiro lugar não tivessem alma e em segundo lugar, no caso que admitíssemos que têm alma,
como se a alma negra estivesse suja e sujasse a oração. Dá pena quando a branquitude se arroga
o direito de ser pedagoga da democracia do mundo. Incrível cinismo!
Outra das convicções próprias do docente democrático consiste em saber que ensinar não é
transferir conteúdos de sua cabeça à cabeça dos alunos. Ensinar é possibilitar que os alunos,
desenvolvendo sua curiosidade e tornando-a cada vez mais critica, produzam o conhecimento
em colaboração com os professores. Ao docente não cabe transmitir o conhecimento, só lhe
cabe propor ao aluno elaborar os meios necessários para construir sua própria compreensão do
processo de conhecer e do objeto estudado.
A complexidade da prática educativa é tal, que nos apresentam a necessidade de considerar
todos os elementos que possam conduzir a um bom processo educativo, nos impõe a
necessidade de inventar situações criadoras de saberes, sem as quais a prática educativa
autentica não seria possível. E digo isto porque as virtudes e as condições propicias à boa
prática educativa não caem prontas do céu. Não há um Deus que envia virtudes de presente, não
há uma burocracia divina encarregada de distribuir virtudes. Saberes e virtudes devem ser
criadas, inventadas por nós. Ninguém nasce generoso, critico, honrado ou responsável. Nós
nascemos com estas possibilidades, mas temos que criá-las, desenvolvê-las e cultivá-las em
nossa prática cotidiana. Somos o que estamos sendo. A condição para que eu seja é que esteja
sendo. Cada um é um processo e um projeto e não um destino. É preciso que na minha própria
experiência social, na minha própria prática eu descubra os caminhos para fazer melhor o que
quero fazer. Na minha prática docente aprendi a necessidade da coerência, que não podia ter um
discurso distante da minha prática, que tinha de buscar uma identificação quase absoluta entre o
que dizia e o que fazia. E esta é uma virtude que se chama coerência. Descobri também que a
efetividade da minha prática estava ligada à necessidade de aceitar o protagonismo dos
demais, à necessidade de não pensar que sou o único no mundo que pode fazer certas coisas e à
necessidade de não ter ressentimento com as pessoas que podem fazer as coisas que eu gostaria
de fazer e não faço porque não sou capaz. Descobri que não podia odiar quem estava feliz no
mundo simplesmente porque estava feliz, mas aprendi também que devia continuar indignado
ante a difícil situação que cria a infelicidade dos demais. Este respeito ao direito dos outros,
este reconhecer os outros podem fazer as coisas que nós não fazemos, se chama humildade. E a
humildade não implica o gosto de ser humilhado, pelo contrario, a pessoa humilde refuta a
humilhação.
Concluindo, professores e professoras, educadores e educadoras, alunos e alunas, nos
preocupemos pela criação e recriação em nós e em nossos lugares de trabalho daquelas
qualidades fundamentais que são as que nos vão permitir realizar nossos sonhos.
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A LUTA NÃO ACABA, SE REINVENTA
(Perguntas)
Como motivar aos alunos e impedir que se adaptem ao desinteresse, ao individualismo e à
falta de solidariedade imperante?
Evitar o empacotamento dos alunos é uma de nossas tarefas. Obviamente frente ao problema do
desemprego não é fácil motivar à gente, mantê-la inclusive em uma posição de esperança, mas é
fundamental que discutamos com os alunos a própria razão de ser, a origem de nossas
dificuldades. Se nós conseguimos convencer aos jovens que a realidade, por mais difícil seja,
pode ser transformada, estaremos cumprindo uma das tarefas históricas do momento. Há que
levar em conta que a historia não termina com a historia individual de cada um. Eu vou morrer
dentro de pouco, mas a historia do Brasil segue com os outros brasileiros e brasileiras. A
historia é um processo. Se nós fazemos nossa parte contribuiremos à luta da geração seguinte.
Mesmo quando em certos momentos alguém possa sentir-se cansado, mesmo quando pode
pensar que seu tempo de luta passou, não tem direito de desistir da luta. O que sim tem, é o
direito de descansar um dia. Eu não tenho direito de desistir de uma luta porque cheguei aos
setenta e cinco anos. Sou jovem ainda para isso.
Qual é a utopia educadora possível hoje na América Latina?
A utopia possível não somente na América Latina, senão no mundo, é a reinvenção das
sociedades, no sentido de fazê-las mais humanas, menos feias, no sentido de transformar a
feiúra em beleza. A utopia possível é trabalhar para fazer que nossas sociedades sejam mais
visíveis, mais desejáveis para todo o mundo, para todas as classes sociais.
Metodologicamente, como organizar a resistência?
Começando por nossa própria localidade, por nosso bairro, nossa vizinhança. Precisamos
reinventar as formas de ação política. Muita gente não lembra nem em quem votaram. Há que
revalorizar a democracia. Não é só preciso saber em quem votamos, senão saber o que estão
fazendo aqueles e aquelas por quem votamos, pedir-lhes que prestem contas, denunciá-los se
não cumprem, para não voltar a votá-los nas próximas eleições. Há que vigiá-los. Outra coisa
que se poderia fazer é recopilar as declarações dos diferentes candidatos, fazer uma lista das
promessas feitas durante a campanha eleitoral e controlar se o que disseram coincide com o que
estão fazendo. Geralmente durante a campanha eleitoral, se faz um discurso que não tem nada a
ver com a prática posterior. Há que publicar estas coisas. Denunciar os candidatos que não estão
cumprindo suas promessas é uma forma de briga, uma forma de romper o isolamento. Este é
apenas um exemplo do que se pode fazer.
Acabou a historia? Acabaram as ideologias? Terminaram as classes sociais?
O primeiro é rejeitar estes discursos, defini-los pelo que são, discursos puramente ideológicos,
pertencentes a uma ideologia reacionária. A historia não acabou, segue viva e é de luta. As
classes sociais não acabaram, estão aí, se manifestando nas ruas do mundo inteiro, a exploração
não terminou, nem os fatos são irreversíveis. Temos que compreender que as lutas dos povos
atravessam etapas diferentes e estas etapas têm dificuldades diferentes. Hoje, na radio da
Universidade citei uma reunião que se realizou em Berlim, sobre a influencia da situação de
Chiapas, onde cientistas europeus emitiram uma dura critica ao discurso e à prática econômica
neoliberal. Uma analise muito seria que nesse momento continua no México. Encontros como
estes são testemunhas de que é possível brigar. De que é preciso brigar.
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Como conseguir a mudança na atitude docente?
Em primeiro lugar, é preciso que o docente esteja pelo menos inclinado a mudar. Em segundo
lugar, o docente deve ter clareza de qual é a sua posição política. A educação é uma prática
política e o docente como qualquer outro cidadão deve fazer sua eleição. Em terceiro lugar, é
preciso que o docente comece a construir sua coerência, que diminuía a distância entre seu
discurso e sua ação. Como posso fazer um discurso progressista e logo assumir um
comportamento sectário, com preconceitos de classe ou de raça? Estas contradições, às vezes
solapadas, devem ser reveladas. A primeira briga que um docente progressista deve ser consigo
mesmo. Esse é o começo da mudança.
Como construir a pedagogia da mobilidade?
Em primeiro lugar movendo-nos. Não é possível trabalhar por uma pedagogia do movimento
ficando quietos. Primeiro temos de andar, e andar significa nesse caso, mesmo ficando sentados,
estar abertos à mudança e à diferença. Eu não posso falar aos alunos de uma pedagogia da
palavra se os silencio, se ante uma pergunta que me cria dificuldade, respondo: você sabe com
quem está falando? Vocês não imaginam o que se aprende com o diferente. Às vezes não
aprendemos com o igual, mas com o diferente, sempre. Às vezes aprendemos inclusive com o
antagônico. Uma pedagogia do movimento é uma pedagogia de abertura para o outro, o
diferente. Quando cheguei do exílio, em um de meus seminários, na Universidade Católica de
São Paulo, tive de aluna uma jovem senhora, seguramente reacionária, que guardava para minha
pessoa um ressentimento gratuito, histórico. Quando falei sobre o que pensava fazer, ela me
olhou e me disse: não vou faltar nem um dia a sua classe porque quero ver se há coerência entre
o que você diz e o que você faz. Eu lhe respondi: muito bem, muito obrigado, estou contente de
que você venha, será sempre bem recebida e tenho a certeza de que quando terminemos o
semestre você vai descobrir com provas concretas que o que digo coincide com o que faço.
Nunca tivemos uma relação maior, mas nunca faltou e terminado o semestre teve a nota mais
alta, porque era uma mulher séria, estudiosa e inteligente, mas reacionária, e era um direito que
tinha, o de ser reacionária, como o direito que eu tenho de não ser reacionário. Cortesmente nos
despedimos e ela disse: você faz o que diz. Esse foi o maior presente. Na realidade, o melhor
presente teria sido que ela viesse e me dissesse: me converti, agora sou uma mulher
progressista. Não é fácil. Sempre existe a tentação de rejeitar ao que pensa diferente. Há que
existir essa briga. O professor que quer ser coerente com sua posição democrática e ética tem a
obrigação de entender e respeitar as opiniões diferentes das suas.
Como resistir do espaço gremial, em uma época em que as organizações dos trabalhadores
estão desvalorizadas e infiltradas pela cultura dominante?
Esta é outra questão muito séria. No meu juízo, os grêmios deveriam estudar com muita
seriedade a situação atual. Vocês já perceberam, por exemplo, como as greves estão debilitadas.
Mas o fato de que as greves percam eficácia não significa, primeiro, que a luta deva
desaparecer. A luta é histórica. A maneira como a luta se dá é também histórica, têmporoespacial.
Não necessariamente se luta da mesma maneira aqui que em Paris.
O fundamental é saber que a luta não acabou, não acaba, que sendo histórica, muda a maneira
de apresentar-se e de fazer-se, e por isso tem que ser reinventada em função das circunstâncias
históricas e sociais. Se a greve de professores não funciona, cabe aos educadores discutir
cientificamente qual será em cada momento a maneira mais eficaz de brigar. A questão não é
desistir da briga, é mudar as formas de briga. Com a chamada globalização, uma multinacional
de Chicago que tenha uma fabrica em São Paulo, se a fabrica de São Paulo ameaça com uma
greve, em Chicago, em dez minutos, somente consultando o computador podem saber se é
possível transferir a produção a outro país onde inclusive seria mais barata. Então fecha a
fabrica de São Paulo e acaba a greve. A questão não é parar de brigar. Este é o discurso
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totalitário neoliberal. A questão é mudar a maneira de brigar. Há que reinventar a forma de
brigar, mas nunca parar de brigar.
O que você diria à gente jovem que descrê, que não conheceu a época de luta de seus pais?
A gente jovem precisa saber que a existência humana é uma experiência de luta. É importante
fazer notar como a luta, e inclusive a violência, está presente em toda experiência humana. Ao
esculpir a pedra, o escultor rompe o equilíbrio do ser da pedra, há certa violência criativa ali.
Em ultima analise, a existência humana é uma existência conflitiva. A questão é como fazer
para que a experiência humana seja cada vez mais uma experiência .gentificada., de gente, de
pessoas, de sujeitos, não de objetos. E isto não se consegue sem briga, sem esperança, sem
tenacidade e sem força.
Como afrontar da docência a desesperança imperante?
O único caminho é reencontrar razões de esperança na desesperança. Reconstruir a esperança. E
para isso, há que reconhecer os diferentes tempos históricos, reconhecer que hoje a luta é mais
difícil. E se faz falta, terá que aprender inclusive a hibernar. O mundo não vai acabar por dois
ou três anos de espera. Eu não tenho dúvidas de que muita da desesperança atual frente ao
cinismo desta ideologia fatalista neoliberal vai se converter em força de esperança por causa
desse mesmo cinismo, desse fatalismo ideológico que não vai durar muito tempo. Com respeito
à dupla esperança-desesperança, é bom lembrar que a historia não começa nem termina com
nós. Creio que é necessário sermos mais humildes em relação a nossa tarefa histórica individual.
Claro que se me considero um líder, se creio que a mim pessoalmente cabe a missão de
transformar o mundo, posso cair na desesperança. Mas se humildemente sei que sou um entre
milhares, que a historia não acaba com minha morte ou com minha geração, senão que segue,
então compreenderei que o mínimo que possa fazer sempre resultara útil.
O que você entende por ética do educador?
A ética define o dever ser, estabelece os princípios morais de convivência e respeito, regra nossa
presença no mundo. Para evitar a armadilha da ideologia digo que a ética tem a ver com o
sentido comum. Por exemplo, deste ponto de vista, seria ético explorar as pessoas? Discriminar
o diferente? Será correto humilhar, ironizar, minimizar o aluno? Rir dele? Intimidá-lo? No
sentido comum, ninguém pode aceitar isso. A ética é uma atitude concreta que não provêm de
discursos abstratos, senão de vivê-la. No Brasil há professores que incitam aos alunos a faltar
nas aulas quando o dia seguinte é feriado. Creio que um professor que age dessa maneira está
faltando com a ética. O processo educativo é sobretudo ético. Exige de nós um constante
testemunho de seriedade. Uma das boas qualidades de um professor, de uma professora, é
testemunhar aos alunos que a ignorância é o ponto de partida da sabedoria, que equivocar-se não
é um pecado, que forma parte do processo de conhecer. O erro é um momento da busca do
saber. É justamente a equivocação que nos permite aprender. Não tenham vergonha de não
saber, não tratem de chutar a bola para fora, não digam qualquer coisa por medo de passar por
burros. Mas, sobretudo, e isto é fundamental, não silenciem aos alunos. É suficiente com dizer:
não o sei, mas vou averiguá-lo. Sendo jovem, na Universidade, uma aluna me fez uma pergunta
que não sabia responder. Eu lhe respondi: não sei, mas não tenha dúvida que se trabalharmos
juntos podemos encontrar uma resposta. A convido, se você estiver livre no próximo sábado a
almoçar com nós. Veio, almoçamos, passamos dois ou três horas na biblioteca, encontramos a
resposta e na aula seguinte informamos aos demais da busca e do achado. Isto não me
desprestigiou, pelo contrario. O que os jovens querem é uma prova de que podem confiar em
nós, e quanto mais sério o docente, mais acreditam nele.
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A CONFRONTAÇÃO NÃO É PEDAGÓGICA SENÃO POLÍTICA
Conferencia de imprensa
Nos anos 60 e 70 primou a discussão dos grandes temas, entre eles a liberdade e a
autodeterminação dos povos. As ditaduras posteriores cortaram pela raiz esse debate.
Devemos voltar a esses temas?
São os paradoxos da historia. Por um lado, dá a sensação de que tudo aquilo foi esquecido, que
foi superado, e por outro, nos convida a voltar ao tema. Há pouco tempo, no Brasil, fizemos
uma lista dos problemas que minha geração teve de enfrentar e houve jovens de 22-23 anos que
constataram que alguns desses problemas eram os mesmos que tinham de enfrentar hoje. A
questão é que os problemas não surgem do nada, surgem na história, mudam com a história, de
maneira que as respostas que podemos dar a esses problemas não são as mesmas. Em outras
palavras: mudando o tempo histórico, mesmo quando a problemática pode continuar sendo a
mesma, as formas de luta não são necessariamente as mesmas. Um dos temas pendentes
continua sendo o respeito pela integridade humana. De maneira que as gerações podem mudar,
pode mudar a sensibilidade, o que não muda é a necessidade de buscar novos caminhos de
luta. De modo que quando parecia que a questão da integridade do ser humano se acabava, este
tema volta, e não tenho dúvidas de que nos dez ou quinze anos por vir a preocupação pelo ser
ganhará mais força ainda. Eu já não estarei, e vocês, ou outros como vocês, irão fazer perguntas
parecidas a outro Paulo Freire, e dirão: o velho Freire tinha razão: a briga pelo homem e a
mulher buscando seu ser, seu desenvolvimento pleno, vai continuar nos acompanhando.
Nos países subdesenvolvidos a educação está em crise. Como afrontar esta crise?
Em primeiro lugar, creio que a crise da educação não é privativa dos paises subdesenvolvidos.
Em segundo lugar, creio que a crise não é própria da educação senão que é a crise da sociedade
toda, é a crise do sistema socioeconômico no qual estamos insertos que necessariamente se
reflete na educação. De minha parte, não tenho dúvida de que a confrontação não é
pedagógica senão política. Não é brigando pedagogicamente que vou mudar a pedagogia. Não
são os filósofos da educação os que mudam a pedagogia, são os políticos sob a nossa pressão os
que vão fazê-lo, se pressionarmos. A educação é uma prática eminentemente política. Daí a
impossibilidade de implementar uma pedagogia neutra. No fundo, não há nada neutro. Para
mim, esta é uma briga política. E um dos problemas que devemos afrontar hoje é como nos
comunicar com as grandes maiorias que agora se encontram divididas em minorias e que não se
percebem a si mesmas como maiorias. Há que reinventar os caminhos da comunicação, da
intercomunicação. Coincidindo com Habermas, não tenho dúvida de que a questão da
comunicação é essencial neste fim de século. E não é possível pensar o tema da comunicação
sem afrontar, por exemplo, o tema da inteligibilidade do mundo. É justamente a possibilidade de
entender o mundo a que permite comunicá-lo. Para nós, como educadores, a questão a afrontar é
como trabalhar a comunicabilidade, como transformá-la em comunicação. Tarefa
eminentemente política. Sou otimista. Repito o que para mim é uma certeza: mudar é difícil,
mas possível.
Qual é, a seu ver, a situação dos setores populares latino-americanos no contexto da atual
política neoliberal?
Esta é uma pergunta que todo educador deveria se fazer. Um dos maiores desafios do momento
é como fazer frente à ideologia paralisante e fatalista que o discurso neoliberal impôs. Duas
coisas a respeito deste tema. A primeira é que, ao contrario do que habitualmente acredita-se, o
grande poder do discurso neoliberal reside mais em sua dimensão ideológico-política que
em sua dimensão econômica. No Brasil, este fatalismo se difunde massivamente tanto no
âmbito de trabalho como no acadêmico. Quando sustento que não podemos aceitar que 30
22
milhões de brasileiros e brasileiras estejam morrendo de fome, a resposta que costumo escutar é:
Paulo, é trágico, mas esta é a realidade. Este discurso é imoral e absurdo. A realidade não é
assim, a realidade está assim. E está assim não porque ela queira, nenhuma realidade é dona de
si mesma, esta realidade está assim porque estando assim serve a determinados interesses
do poder. Nossa luta é por mudar esta realidade e não nos acomodar a ela. Este fatalismo pósmoderno
não existia antes, é uma conotação fundamental do discurso neoliberal que deve ser
combatida com a máxima firmeza. Devemos estar em guarda, muito atentos, nos levantar terçafeira
e nos perguntarmos se não nos entregamos ao fatalismo na segunda-feira. O outro ponto a
enfatizar é que este fatalismo criou na prática educativa o que chamam o pragmatismo
neoliberal, que tanto na educação popular como na educação sistemática pode resumir-se em
uma frase alguns de vocês terão ouvido e que diz, por exemplo: .Paulo Freire foi.. E por que
Paulo Freire foi? Precisamente pela dimensão utópica de seu pensamento. Paulo Freire foi
porque mantêm essa posição esperançada e utópica que em outras partes já não existe. E em que
consiste este pragmatismo neoliberal? Em não falar mais da formação senão do treinamento
técnico e científico dos educadores. Por exemplo, a faculdade de medicina deveria treinar bem
aos cirurgiões, aos clínicos, cada qual em sua especialidade. E a educação popular, sempre
segundo essa visão, deveria capacitar aos artesãos, por exemplo, mas não formá-los. Este
discurso se refere também à palavra cidadania, mas a limita essencialmente à boa capacitação
para produzir. Para nós, em contrapartida, o bom cidadão é um bom homem ou a boa
mulher e só se são bons homens e boas mulheres poderão ser logo bons médicos ou bons
artesãos. Somos gente antes que especialistas. Minha pedagogia continua sendo uma pedagogia
da .gentificação., da .gentitude., pretende formar boas pessoas e não somente especialistas.
Esta é a posição que devemos assumir para frear e derrotar a avançada ideológica do
neoliberalismo.
No seio deste modelo, que não só pretende excluir às classes populares senão também a
boa parte da classe média, não acredita que no futuro a luta de classes acontecerá pela
apropriação do conhecimento?
Em primeiro lugar, os semi-discursos da chamada pós-modernidade falam da morte das
ideologias, mas acontece que só há uma maneira de matar a ideologia e é ideologicamente.
Estes semi-discursos sustêm, por exemplo, que já não há classes sociais. Eu digo, está bem,
suponhamos, para seguir com o exemplo, que as classes sociais acabaram. Bem. Agora
pergunto: acabou a exploração? Se me respondem que sim, que a exploração acabou, peço que
me mostrem um lugar no mundo onde isto aconteceu. Não podem. Lamentavelmente a
exploração continua e onde a exploração continua, continuam as classes sociais, uma
exploradora e uma explorada. A exploração é quase tão velha quanto a história humana.
Seguindo com o tema das classes sociais, não importa que hoje tenham este ou outro nome, as
classes sociais são um produto histórico e como tais mudam historicamente. É mais fácil
perceber a existência das classes sociais em São Paulo que em Genebra, mas isto não me
autoriza a dizer que não há classes sociais em Genebra. É suficiente uma análise bem feita e em
cinco minutos identificamos às classes sociais genebrinas. Um dia, em um debate universitário
sobre a existência ou não das classes sociais, eu disse no Brasil: um bom exercício que podemos
fazer para compreender se há ou não classes sociais, é comparar esta universidade onde
estamos, com uma qualquer dos Estados Unidos. Obviamente, historicamente, as classes
mudam, mas continuam existindo. Isto é o que eu acredito. Mas ao mesmo tempo, não tenho
nenhuma dúvida de que mais cedo do que muitos pensam, os homens e as mulheres do
mundo vão reinventar maneiras novas de brigar, que nem podemos imaginar agora.
Recentemente, houve em Berlim um encontro de cientistas europeus reunidos para discutir uma
alternativa a partir da situação de Chiapas. Foi um encontro cheio de vida, de esperança e de
rebeldia, nas antípodas do neoliberalismo. Ali sustive que hoje já podemos perceber que novas
formas de rebeldia hão de ser inventadas. Eu não tenho dúvida de que isto vai acontecer, mas
creio que vou morrer, e é uma pena, antes de poder vê-las. Não tenho dúvida de que este
processo de re-humanização, de .gentificação., vai acontecer.
23
No marco deste fatalismo neoliberal, quais são suas reflexões com respeito à educação
popular?
Na minha opinião, há toda uma constelação de questões políticas e pedagógicas que deveríamos
estar afrontando no campo estratégico do que chamamos .educação popular..
Esta questão do imobilismo-fatalismo é obviamente uma delas. No final dos anos cinqüenta
popularizei uma palavra estranha: .conscientização.. Já esclareci varias vezes que não sou o
criador deste conceito, mas me sinto responsável da compreensão político-pedagógicaepistemol
ógica do mesmo. Uma de minhas preocupações fundamentais, então, foi considerar à
conscientização como uma postura mais radical de entender o mundo, se comparada com a
postura que comumente definimos como tomada de consciência. Em outras palavras, a
conscientização passa pela tomada de consciência, mas a aprofunda. Quando eu tentei este
esforço tinha em mente justamente a questão do fatalismo. Pretendia combater as posições
imobilizadoras do fatalismo campesino, que frente a uma situação de exploração, geralmente
busca a razão de ser dessa situação fora da história, a localiza no desejo de Deus, como
conseqüência de seus pecados ou do destino. Perguntava-me como fazer para que os grupos
populares fatalistas pudessem perceber que em última instância, a cultura é criação do homem e
da mulher, de sua ação, de sua imaginação sobre um mundo que nós não inventamos, que
encontramos feito. Lembro que para afrontar esta questão, me pareceu importante aprofundar
criticamente o tema da cultura. E dizer: se fomos capazes de mudar o mundo natural, que não
fizemos, que já estava feito, se mediante nossa intervenção fomos capazes de agregar algo que
não existia, como não vamos ser capazes de mudar o mundo que sim fizemos, o mundo da
cultura, da política, da exploração e das classes sociais? Apresentando deste modo, o conceito
de cultura provocou um shock. Citei algumas destas reações em meus livros. Por exemplo, em
Brasília, na penumbra de um Centro de cultura, um gari escutou paralisado as, para ele
imaginadas, facetas do tema da cultura, tomou a palavra e proclamou: a partir de amanhã vou
entrar ao meu trabalho com a cabeça erguida. Nunca vou esquecer sua reação. Agora tinha
esperanças. Com suas palavras me dizia duas coisas: por um lado, fiz o esforço, entendi, e por
outro, vou entrar com a cabeça erguida, com minha dignidade recuperada, pois pode mudar a
realidade. Outro caso fantástico foi o de uma mulher, orgulhosa, levantando um copo de argila
que tinha feito, e proclamando: é da minha cultura. Mediante a conscientização, o fatalismo
desmorona. Por isso, quando hoje em dia os .pragmáticos. do neoliberalismo dizem: Paulo
Freire foi, eu lhes digo sem raiva, mas com absoluta convicção: não, Paulo Freire não foi, Paulo
Freire continua sendo. E continua sendo porque a história está aí, esperando que façamos
algo com ela, esperando que enfrentemos ao fatalismo neoliberal que imobiliza, que sustêm,
por exemplo, que o numero de pessoas desempregadas no mundo é uma fatalidade deste final de
século. Isto o estão dizendo professores universitários, sociólogos, cientistas políticos. Como é
possível que universitários digam que o desemprego no mundo é uma fatalidade? O que leram?
Como raciocinam? Não. Não há nada fatalmente determinado no mundo da cultura.
Me perguntam sobre a educação popular e aqui minhas propostas não se isolam maiormente do
que fazia nos anos sessenta, ou seja, trabalhar com os grupos mais necessitados, das favelas,
ajudar à gente a compreender que não há fatalismo na conduta humana, que a história a
construímos nós e ela, por sua vez, nos constrói. Mas para que a história nos construísse foi
preciso que antes nós a construíssemos. A história não poderia antecipar-se aos homens
porque a história é um produto cultural. Foi criando a história que homens e mulheres se
fizeram na história. De maneira que há que voltar a discutir este tema da conscientização do
sujeito como fazedor da mesma. Não há momento mais crucial que este na formação do sujeito
autônomo. E não há momento mais efetivo no discurso neoliberal que aquele no qual os sujeitos
se assumem a si mesmos como meros objetos porque consideram que isto é inevitável. Há que
brigar. Há que combater por todos os meios este fatalismo como passo prévio para qualquer
outra modificação posterior.
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O CONHECIMENTO COMO MERCADORIA,
A ESCOLA COMO SHOPPING,
OS DOCENTES COMO PROLETÁRIOS
(Palavras pronunciadas por Pablo Imen durante a cerimônia de imposição do nome de Paulo Freire à
Classe magna da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade Nacional do Comahue).*
25-11-1999
Quero agradecer o convite a este espaço, para fazer alguma contribuição que ajude a refletir
sobre os desafios para a construção de uma verdadeira Educação Popular. O nome de Paulo
Freire é uma referencia necessária, inevitável. Sua proposta teórica e prática é um instrumento e
uma forma de pensar e fazer a educação que deveremos retomar para definir, neste novo e
complexo contexto de fim de milênio, as linhas de trabalho de um projeto político-educativo
libertador.
Falando de um professor como Paulo Freire, não são aceitáveis fórmulas imperecíveis: o menos
freiriano seria dizer: como diz Paulo Freire a Educação Popular é o seguinte, dois pontos.
Os sistemas educativos formais nasceram com mandados paradoxais. Enquanto as classes
dominantes admitiam a educação básica de massas como um requerimento para disciplinar,
classificar e prover instrumentos para o trabalho assalariado, os setores populares brigaram pela
ampliação e a mudança de sentido da educação pública: devia tratar-se de um cenário que
permitisse expandir o espaço do público para pôr ao alcance dos filhos do povo os avanços do
conhecimento e da cultura.
Por isto, a Educação Popular se disputa tanto dentro como fora das instituições educativas.
Como diz Freire, não há prática social mais política que a prática educativa. Como efeito, a
educação pode ocultar a realidade de dominação e a alienação, ou pode pelo contrario,
denunciá-las, anunciar outros caminhos, convertendo-se assim em uma ferramenta
emancipatória.
Vistas sob esta óptica, as práticas pedagógicas . atravessadas e imbricadas com as demais
práticas socais . devem analisar-se além da relação educador-educando. Uma das ferramentas
utilizadas para mascarar a educação como ferramenta de dominação é a omissão do
.fora., do extra-escolar. Na prática, o educativo fica circunscrito ao âmbito da classe.
Ausência de história e corte da relação educação-contexto, eis aqui as perspectivas que
impedem uma leitura dialética dos processos educativos.
A realidade é que a relação pedagógica está atravessada por um monte de variáveis que
aparecem fora da classe. Hoje um companheiro dizia que um garoto que vai com fome à escola
não tem nenhuma possibilidade de apropriar-se do conhecimento. Nesta perspectiva, não é
possível falar então de um projeto pedagógico emancipatório e libertador em uma sociedade
desigual e injusta como a atual.
Nesta questão da Educação Popular há uma longuíssima discussão sobre se as instituições
educativas estatais são meras reprodutoras da desigualdade e da exclusão, e se a Educação
Popular só poderia acontecer fora destas instituições. E na verdade, este ato, aqui em uma
Universidade pública, desmente o pressuposto da instituição educativa formal como mera
reprodutora do sistema. Quero dizer: o fato de que esta classe a partir de hoje se chame Paulo
Freire e que esta Universidade tenha um projeto de oficinas e de produção coletiva de
conhecimento para transformar o mundo, indica que o popular e educativo estão tanto dentro
como fora das instituições.
25
Há um mito que diz que dentro das instituições e da escola somente se reproduz a ideologia
dominante e que o sistema educativo só é funcional aos requerimentos da economia de mercado.
A rigor, quando alguém analisa os resultados do Sistema Educativo pareceria que é assim. No
ano 1991, ou seja cem anos depois de fundado o Sistema Educativo, o censo dizia que havia
955.000 analfabetos. Ou seja, que a utopia pedagógica liberal do cidadão alfabetizado não se
cumpriu.
Quando analisamos, por exemplo, os dados do atraso escolar, vemos que em 1991, 30% dos
garotos entre 13 e 15 anos estão ainda na primária. E quando desagregamos por profissão dos
pais, entre os filhos de profissionais só 10% tem atraso escolar, quando que entre os filhos de
obreiros não qualificados, essa porcentagem chega a 48%. Isto parece indicar que em seu
conjunto o Sistema Educativo é reprodutor. Contudo, esta leitura seria unilateral se não
pudéssemos ver outros processos que operam no sentido contrário. O mesmo Paulo Freire fez
uma evolução neste sentido. Nos anos sessenta sua proposta político-pedagógica se desenvolveu
ao costado da escola, foi uma educação desescolarizante porque se sustinha que fora do sistema
alguém podia educar para a libertação. Logo depois do aluvião neoliberal que arrasou os
espaços públicos, Paulo Freire reconsidera muitos de seus pontos de vista dos sessenta e sustem
que a escola pública e estatal é também um espaço que há que defender para democratizar o
conhecimento. Para reafirmá-lo, assume como Secretário de Educação em um governo do
Partido dos Trabalhadores (PT) e chama a re-fundar a Escola Pública em um sentido libertador.
Há algo mais grave ainda que desconhecer os processos e fenômenos democratizantes e
igualitários na escola e é renunciar à luta pela Escola Pública fazendo o jogo da dominação de
classe. A única briga que se perde, sustêm as Mães da Praça de Maio, é a que se abandona.
Convém esclarecer que não estou falando da Escola Pública a partir de uma posição nostálgica.
Como mostram os dados que acabo de mencionar, esta escola foi injusta a sua maneira:
distribuiu desigualmente os conhecimentos, não se caracterizou por um impulso à igualdade e à
autonomia do pensamento. O modelo de instrução pública, implantado pela geração de oitenta
tem suas contradições. Contudo, o que hoje nos propõe os economistas ortodoxos como
alternativa é muito pior. O conhecimento entendido como mercadoria, a escola como
shopping do saber, os pais como clientes e os docentes como proletários, é uma proposta
que tende a aprofundar a desigualdade de modo análogo ao que ocorre com o
fundamentalismo de mercado. E em momentos em que há mudanças de ministros, mas não de
políticas e portanto vai continuar com o desmantelamento da Escola Pública, me parece
importante fazer um levantamento de quais são os novos mecanismos pelos quais se converte a
educação em mercadoria e se destrói a idéia de educação como um direito social.
A descentralização que propõe o governo nada tem a ver com a democracia. Por quê? Porque o
Ministério da Educação se reserva uma série de atribuições muito importantes.
- Em primeiro lugar, se reserva o direito de definir os Conteúdos Básicos Comuns (CBC),
aqueles que têm que aprender todos as crianças do país. Estes conteúdos se estabeleceram
consultando a .expertos. como Juan Aleman e Martinez de Hoz que colaboraram na elaboração
dos conteúdos de economia. Não sei se lhes é estranho estes nomes, conspícuos funcionários da
última ditadura genocida. Estes conteúdos são logo re-elaborados pelas empresas editorais que
se encarregam de explicar aos professores que e como tem que ensinar. Ou seja, o docente é um
mero administrador do pacote pedagógico que se desenha fora da classe. Parece oportuno
esclarecê-lo: não nos opomos à definição de um piso que assegure um nível de unidade
nacional. Mas então seria bom nos perguntarmos quem o definem e que papel jogam os atores
do sistema. Falo concretamente de docentes, diretivos, estudantes, militantes da educação
pública. Nenhum deles teve participação no desenho destes conteúdos, mas sim a tiveram em
contrapartida algumas instituições como a Igreja Católica, graças à qual Darwin desapareceu
dos CBC, e o .ambíguo. termo de .gênero. foi substituído pelo .moralmente correto. de sexo.
26
- Um segundo mecanismo é a distribuição de dinheiro através do Plano Social. A maioria das
escolas do país estão baixo Plano Social. Este plano, que tinha como objetivo focalizar o
investimento em aquelas escolas que tinham maiores necessidades, hoje parece que a maioria
das escolas estão nessa situação. Estes planos possibilitam por sua vez a realização de
interessantes negócios como a colocação de livros invendíveis a preços muito bons que desta
maneira inundam as escolas. Ademais, as escolas assumem o compromisso institucional de
contribuir ao avanço da .Transformação Educativa. (sic).
- Um terceiro mecanismo desta descentralização centralizada por parte do Ministério é a
formação docente através da Rede Federal de Capacitação que funciona como um mercado onde
se licitam os cursos, e onde alguém compra cursos que não têm nada a ver com a própria
prática. Isto foi oportunamente mostrado por docentes que sofrem esta política de .cursilismo.,
como um mecanismo de intensificação do trabalho que serve como ameaça a sua estabilidade de
trabalho. Dito de outro modo, para poder absorver novos turnos, os docentes se vêm compelidos
a tomar estes cursos. O efeito disciplinar desta política é evidente: impedido de .pensar., o
docente deve concentrar funções, tempos, ritmos e responsabilidades.
- Um quarto elemento de controle são os Operativos Nacionais de Avaliação que pretendem
converter-se em um instrumento para rankear às escolas. A idéia, que provem de Chile, é talvez
o modelo mais acabado, em termos de mercado educativo, para conseguir que cada escola
receba financiamento em relação com a quantidade de alunos que tenha, que se elabore um
raking das instituições e se publique em diários e nas portas dos colégios.
Qual é a conseqüência desta política? A conseqüência é que com estes mecanismos vai
gerando-se um sistema dual. Por um lado escolas privadas que funcionam como um
mercado; e por outro escolas públicas para pobres, em cujo interior se sobressaem
também os mecanismos de mercado. No Rio Negro houve uma proposta de eliminar o cargo
de secretario e por em seu lugar o cargo de gerente, que seria exercido por um representante do
U.P.C.N (Conselho Diretivo Nacional) resolvendo desta maneira as questões de gerenciamento
para administrar corretamente os recursos dentro da escola.
Esta nova configuração do Sistema Educativo nos obriga a lutar por uma Educação Popular
tanto fora como dentro do sistema educativo. Por isso, quando falamos de democracia
educativa, estamos levantando a necessidade de lutar por três questões essenciais:
- A primeira, é reinstalar a democracia social no sistema educativo. Assegurar que todos as
crianças entrem, permaneçam, se re-insiram e terminem nos níveis obrigatórios e não
obrigatórios também.
- A segunda, é que a escola não é um lugar de trânsito. Um funcionário da província de Buenos
Aires disse há pouco tempo: .não nos preocupa tanto que as crianças aprendam. Contanto que
não estejam na rua.. Que na escola se aprenda, que seja um lugar de apropriação universal do
conhecimento, esta é uma bandeira irrenunciável. Esta apropriação, por sua vez, deve ser crítica,
capaz de fomentar a autonomia de um pensamento, a conduta solidária e a capacidade de
construir projetos coletivos.
- A terceira, é que a escola seja um espaço de formação democrática, com governos colegiados,
onde todos possam expressar seus pontos de vista e tomar diferentes decisões.
Todo o exposto não pode dissociar-se das condições laborais concretas: não há educação
democratizante com professores submetidos a patéticos salários, ao amontoamento nas classes.
Não pode haver democracia educativa se não há democracia na economia e na política. De
modo que o projeto educativo deverá ter duas linhas de abordagem: por um lado, não poderá
apresentar-se sem um projeto geral de sociedade igualitária e emancipatória; mas por outro, e no
.enquanto isso., terá que fazer algo alcançá-lo.
27
Insisto: não se trata só de uma luta .pela. educação democrática, é além disso uma luta .na.
educação realmente existente. E se alguma vez mudam as coisas . e isto ocorrerá . será que
porque fomos capazes de iluminar práticas alternativas, libertadoras. Isto deve ocorrer em todos
os planos da vida social.
Por último, Paulo Freire nos propõe uma metodologia que na verdade não começa com ele.
Visto dialeticamente, Freire contribui a partir de um processo. Na Argentina de 1918 houve em
Córdoba uma reforma universitária onde os estudantes tomaram as faculdades e tombaram as
estatuas que operavam como imagens da história oficial, do poder hegemônico da Igreja. Digo
isto porque estou falando em uma Universidade pública e é oportuno e justo resgatar esta parte
silenciada da história. Essa Universidade de Córdoba estava dirigida por professores medíocres
que sustinham o ensino do dogma como principio reitor e, na grande maioria das vezes,
excluidor do conhecimento. Os estudantes derrubaram as estatuas e as substituíram por cartazes
que diziam: .neste país sobram pedestais e faltam bronzes., ou seja, modelos aos quais se
podem seguir para crescer de outra maneira. Antecedendo a Freire, esses estudantes
consideravam que a relação pedagógica era uma forma de construção coletiva do
conhecimento; em outras palavras diziam que o que aprende ensina e o que ensina aprende e
que aprendendo juntos se transforma a realidade e se produzem mudanças na história.
Nos restam então algumas tarefas pendentes. Não é justo, não é científico, nem é politicamente
acertado acusar de todos nossos males às políticas educativas. A rigor da verdade, se as políticas
funcionam eficientemente é porque os docentes somos . em algum ponto . funcionais e temos
atitudes que favorecem essas políticas. O mesmo vale para os estudantes. A idéia não é fazer
aqui um tribunal, de nenhum modo. Mas devemos refletir critica e autocriticamente. Dentro da
escola, como o modelo que aprendemos é o de do professor isolado, a proposta tem que ser
gerar coletivos de trabalho. Coisas fácil de dizer, mas dadas as condições laborais docentes, não
sempre fácil de implementar. Há que vencer esta tendência ao individualismo, única maneira de
gerar novas práticas.
Reitero: uma tarefa central é gerar espaços de reflexão coletiva, permanente, sistemática, de
dialogo franco para dar um combate concreto contra a pedagogia da docilidade, da
domesticação, da escravidão. Este é o desafio imediato e de longo prazo que temos pela frente
para poder construir alternativas que nos permitam pensar, dizer e fazer outros futuros possíveis.
Desta maneira, teremos homenageado a um Paulo Freire vivo e não canonizado. Aquele que
recomendava: conhecer o mundo e transformá-lo revolucionariamente.
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DE ONDE, COMO, COM QUEM, COM QUE VALORES?
(Palavras pronunciadas por Roberto Iglesias durante a cerimônia de imposição do nome de Paulo
Freire à Classe magna da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade Nacional do
Comahue).*
25-11-1999
Uma pessoa não pode deixar de emocionar-se quando vê o nome de Paulo Freire em uma placa
e de felicitar a Universidade do Comahue que teve a iniciativa. Sobretudo porque o sistema
tende a fazer dois coisas com Freire, ou convertê-lo em mito, ou dizer: está fora de moda, seu
contexto era o dos anos 60-70, hoje não tem nada a dizer.
Nem uma coisa, nem a outra. Nem moda, nem mito: símbolo. O mito é intocável, o símbolo, em
contrapartida, nos representa, é um referente. Freire é o professor da América relegada, como
lhe diziam em Cochabamba. Por isso creio que a melhor maneira de homenageá-lo, mais que
falar dele, é que cada um conte as coisas que faz em nome do que ele escreveu, do que ele nos
ensinou.
Nós, os integrantes do Grupo Sendas, estamos numa busca por fora dos cenários convencionais,
sem popes [sacerdotes] e a partir do simples, trabalhando de forma horizontal com jovens e
adultos para buscar o crescimento coletivo.
A mim me dá a impressão de que, ainda com dificuldade, começa a aparecer uma nova forma de
movimento crítico construtivo, que como diz Pablo Imen, não pode nem deve ser nostálgico,
mas tampouco antecipatório. A nós nos interessa, não só a palavra senão também o gesto, o
gesto e a palavra como unidade indissociável. A palavra não transforma por si só, não muda,
pode ajudar a refletir, mas palavra separada do gesto, que muitas vezes revela os movimentos
interiores, costuma resultar enganosa ou incompreensível. E o difícil é encontrar os gestos da
educação popular, fazê-la falar com os códigos da gente, levá-la a construir a partir da prática
concreta, militante e subjetiva, a partir dos espaços distintos que permitam recriar um ambiente
crítico e próprio, não só contestatório senão também propositivo.
Uma de nossas preocupações dos últimos tempos, tentando ler o contexto no qual vivemos, é
desentranhar as teorias explicativas mais importantes da modernidade, como foram o
Liberalismo e o Socialismo. A partir de um ponto de vista científico, ambas filosofias deram um
marco científico a estas explicações, alguns a partir da teoria funcionalista e outros a partir das
teorias do conflito.
E neste sentido, tanto o funcionalismo, ou seja, a direita, como as teorias do conflito, ou seja, o
marxismo, sobretudo em suas vertentes mais ortodoxas, por razões talvez opostas, há vários
anos que não fazem interpretações de corte sociológico, não oferecem ferramentas úteis no atual
contexto.
A direita elaborou uma série de conceitos que não são explicações científicas da realidade, nem
muito menos, senão que têm a ver com conceitos relacionados à teoria política. Mas os impôs
de fato como tais às maiorias. Ou seja, o fez não só a partir do campo material senão que
também os impôs a partir do simbólico. Estamos referindo-nos a toda uma série de conceitos
que por diferentes circunstâncias, a gente bem ou mal foi adotando, como por exemplo: o fim da
história, a morte das ideologias, a primazia do mercado, a competição, a rentabilidade, o ajuste,
a globalização, a flexibilização, a convertibilidade, etc. Ou seja, a direita avançou sobre o
campo que o pensamento crítico deixou livre e de alguma maneira conseguiu popularizar estes
conceitos, enquanto que a esquerda ou o pensamento crítico, por pôr-lhe um nome, não soube
pôr freio, nem apresentar uma alternativa a este avanço, nem a nível teórico, nem a nível
prático-popular e assim ficamos sem possibilidade de construir uma teoria política crítica para
este momento.
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Nossas velhas idéias sobre as novas situações deverão ser revisadas a partir do contextual, a
partir da crítica situação atual. Deveremos ver que idéias e que práticas, que elementos e que
teorias, que questões principais pomos freireanamente em discussão para que de alguma forma a
gente se aproprie dessas ferramentas. Não basta dizer: queremos uma sociedade justa, livre e
solidária. Não basta.
Temos de encontrar as bases teórico-políticas que permitam-nos construir algo coletivo. Por
exemplo, muitas vezes nós, os adultos, marcamos um rumo e exigimos aos jovens que
participem, mas não soltamos o microfone, símbolo do saber-poder. Muitos pais dizem .meus
filhos não falam., muitas professoras .meus alunos não participam., mas não fazem silêncio,
não abrem o espaço para que os garotos participem. São formas falsas de participação.
Estamos infestados de formas falsas de participação, de suposta solidariedade. Neste sentido há
uma tensão não sempre bem resolvida entre o fazer e o dizer que nós estamos tentando corrigir.
E neste sentido Freire continua sendo de extrema atualidade.
Lamentavelmente, não sei se convergem comigo, muitos educadores populares se adaptam ao
sinal dos tempos. Por exemplo, reivindicam o Mercosul, mas o reivindicam a partir das
temáticas que o sistema impõe, não a partir das temáticas das necessidades da gente. São
exemplos.
Enquanto isso, nós caminhamos, às cegas, mas caminhamos e assim continuaremos. E neste
caminhar iremos resolvendo a tensão da participação ativa, das tensões de ser sujeitos nos novos
espaços mudados que se abrem sobretudo com respeito aos jovens. Iremos vendo como
construir uma horizontalidade verdadeira, democrática, e como fazer que essa horizontalidade
participativa, aberta e ética ao mesmo tempo se vá estendendo e convalidando de reunião em
reunião sem que ninguém fique como dono dessas construções.
Se continuamos dizendo que queremos mudar o mundo, que queremos construir outro país neste
país e com nossa gente, é óbvio que não podemos fazê-lo senão a partir de outra vereda, a partir
de outra lógica, outro paradigma. E aqui nos encontramos com mil dificuldades.
Falamos de valores diferentes, tentamos pôr-los em prática, em boa parte o fazemos e então
aparecem as dificuldades. Há disputas, brigas, discussões pelo poder. Vemos que os valores do
sistema que queremos mudar penetraram às vezes muito profundamente. Embora isto seja
doloroso, há que dizê-lo e apresentar uma revisão de nossa atitude com respeito ao onde, ao
como, ao com quem e com que valores vamos construir uma realidade diferente.
Temos pela frente uma urente, dura e fascinante tarefa. As idéias estão, a base social e material,
embora danificada, está.
Creio que há na Argentina uma variada e numerosa quantidade de redes sociais com profundo
conteúdo político de transformação do sistema que estão começando a nos dar algumas
respostas com respeito ao onde, ao como, ao com quem e com que valores construir. É uma
base, um ponto de partida.
Estão os que dizem: nem com os partidos, nem com os sindicados, nem com nada que tenha a
ver com as instituições porque são construções viciadas. Estão os que dizem: vamos com todos,
aleijados, cegos, mudos, os que caminham e os que não caminham, os que têm boas posições e
os que não as têm tão boas, tudo soma. Há que discuti-lo.
Nós, os herdeiros de Freire, temos uma enorme tarefa pela frente. Como fazer para que cada
rede não se constitua em feudo, em laços egocêntricos? Como podemos construir uma rede
com valores e princípios sólidos, mas que não tenha centro, deixando de lado os
personalismos, os sectarismos? Como poder dar origem a um movimento coletivo que se
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proponha um novo tipo de vinculo inter-humano, inter-classe, inter-geração, inter-gênero, inter-
étnico, ecológico e democrático?
Esta é a tarefa. A última vez que viemos a Neuquén, com a Universidade Transhumante,
fizemos uma interessante investigação sobre o trágico e o cômico. A vida é tragédia e comédia.
O trágico está ligado à morte e a comédia à vida. Vimos que a comédia é construtiva,
processual, que permite construir um processo para evitar decisões trágicas. Isto deixou ao ar
livre muita solidão. Alguém vai à escola sozinho, trabalha sozinho. Levou a compreender a
grande tragédia e trabalhar sozinhos, isolados, a compreender que não se muda a
sociedade a partir do esforço individual que é o que o sistema quer que façamos.
Analisando o fatalismo imperante, de que nos falou Freire em São Luis, vimos que não existem
grupos organizados de maneira sistemática que estejam disputando o espaço civil com os
poderosos. Isto nos levou a definir grupo como um numero xis de pessoas com objetivos
precisos de trabalho que pretendem atuar sobre o estrutural e também sobre o conjuntural, que
se reúnem sistematicamente e seriamente pelo menos uma vez por semana e nessas reuniões
trabalham sobre a realidade, fazem práticas sociais que pretendem modificar o atual estado de
coisas pelo menos a longo prazo; que lêem, que estudam, que se relacionam com outros grupos
que a partir de diferentes realidades e a partir de distintas perspectivas, mas com os mesmos
valores tentam fazer mais ou menos o mesmo. Isto, definimos, é trabalhar em grupo, constituir
um grupo. O grupo tem que ter esperança, e a esperança, como diz Freire, não vem feita, há que
construí-la e não se constitui sem objetivos, e os objetivos não se conseguem sem seriedade,
sem método, sem eficácia. O cumprimento dos horários, das tarefas comprometidas, da reflexão
e da autocrítica é condição sine qua non [indispensável] para alcançar a eficácia. Não há outra
maneira.
Há gente que trabalha nos bairros e odeia o acadêmico, e gente que trabalha no acadêmico e
despreza o bairrial. Este é outro ponto a elucidar. Nós acreditamos que temos de aproveitar o
acadêmico para entender o popular e vice-versa.
Há muitas questões comuns que trabalhamos muitas vezes sem poder coletivizá-las. Por
exemplo, a relação existente entre o político-pedagógico e o artístico. A pergunta é: o que tem
de dizer, ou o que tem de dar o artístico ao político-pedagógico e vice-versa? Como
mancomunamos em uma só ação cabeça e coração, princípios e sentimentos? Estamos vendo a
coisa.
Na primeira oficina de artistas que me convidaram a participar, falaram músicos, dançarinos,
teatrais, artesãos. Eu fiz só uma pergunta: Desculpem vocês, os que dançam, os que cantam, os
que forjam, os que fazem música, a favor de quem, contra quem, dançam, cantam ou forjam? Se
armou um bolonqui [confusão] terrível e não falei mais porque não tive mais o que dizer. Como
podemos construir arte sem perder de vista os valores essenciais? A partir de que ética construir
um mundo melhor? Me parece que isto é o que estamos pretendendo a partir da educação formal
ou informal, posto que os dois espaços existem e devem ser ocupados. Neste caso a pergunta é:
como vamos ligando o acadêmico com o popular? São os temas a afrontar. Os estamos
[afrontando] e o continuaremos fazendo até o fim de nossos dias.
Para finalizar, acreditamos que este aparente vazio que ficou no paradigma crítico, há que
começar a enchê-lo de respostas e conteúdos que necessariamente devem sair de uma
construção coletiva.
Temos de começar a dar respostas teóricas, no sentido de encontrar ideais que convirjam na
construção de um projeto coletivo, que sejam como um solzinho que nos abrigue a todos, que
por um lado nos empurre por trás e por outro lado o tenhamos firme na frente: há que voltar a
trabalhar neste sentido o conceito de Revolução, o de construir .outro país. e outros mais que
sairão das coisas que viemos fazendo e de nossos encontros.
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Também temos de dar respostas políticas, no sentido de unificar queixas das maiorias em
relação a nossos representantes que obviamente não cumprem com suas promessas, como
podem ser: pão, trabalho, saúde, educação, justiça, para todos. Temos de dar respostas
metodológicas e organizativas, como são o trabalho grupal, a construção de redes reais,
solidárias, horizontais, participativas.
E fundamentalmente, temos de dar respostas éticas, que não deixem dúvidas de que não
queremos o sistema capitalista, que na construção do novo paradigma não seremos dogmáticos
nem lhe poremos palavras antes de fazê-lo, e que de verdade e sobretudo, somos incomparáveis.

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