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Sunday 21 June 2009

Crise e pespectivas do judaismo secular

Crise e perspectivas do judaísmo secular
Bernardo Sorj*

Como é possível que o judaísmo secular, que foi a principal força do judaísmo do século
XX, desenvolvendo a cultura Yddish e permitindo o surgimento do sionismo e a criação
do estado de Israel, esteja entrando no Século XXI na defensiva. Para responder esta
questao devemos, como ponto de partida, lembrar que, como movimento social, não
existiu nem existe um judaísmo secular, mas movimentos sociais e intelectuais no
interior do judaísmo secular, e estes movimentos hoje estão em crise.
O que unifica os indivíduos seculares democráticos (a modernidade conhece formas de
secularismo não democrático, como o fascismo ou o comunismo) é uma visão de mundo
que dissocia o poder religioso do poder político a partir de valores de respeito a
liberdade de consciência individual, a tolerância e a diversidade de crenças. Ser secular
define os fundamentos sobre as quais deve dar-se a sociabilidade dentro de uma
sociedade moderna democrática, mas não identifica nenhum objetivo específico para a
ação social dos indivíduos ou grupos. Somente em certas circunstancias históricas, em
particular quando se trata de defender a propria existência de uma sociedade secular, a
luta pela secularização se constitui num movimento social, como nos paises onde a
igreja era poderosa (em varios paises da Europa ou no México), ou hoje em Israel, onde
a religião e os grupos religiosos colonizaram parte do estado.
No judaísmo moderno a secularizacao afetou tanto crentes e não crentes em deus, e
ambos procuraram alternativas ao judaísmo ortodoxo. Os judeus crentes, em geral de
orientação liberal, optaram por reformular as praticas e discurso religioso radicional
aceitando os valores da modernidade: a liberdade de consciência, o pluralismo, a
tolerância, e a democracia. Os grupos seculares ateus (em particular aqueles associados
á tradição marxista tinham no seus programas um componente ateu militante) ou
agnósticos, tiveram no sionismo (nas maiorias de suas tendencias e principais
personalidades, desde o liberal Hertzl, pasandol pelo nacionalismo chauvinista de Zeev
* Professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor do Centro
Edelstein de Pesquisas Sociais (besorj@attglobal.net).
2
Javotinsky ao marxismo-leninismo de Meir Yaari) e no bundismo seus principais canais
de expressão. Embora numa perspectiva sociológica pode-se argumentar que estes
movimentos constituíam religiões seculares, podemos seguir os senso comum e
diferenciar entre ideologias e movimentos seculares (não teistas) e religiões
secularizadas (teistas), como os conservative e reformist). Esta opinião é compartilhada
por Ruth Calderon1 ”Unlike what is commonly accepted, it is not the relationship with
God that separates secular and religious Jews. I tend to define the secular Israeli as a
non-halakhic Jew, a definition embodying a wide range of secularity. It includes
complete atheists, those with a more traditional approach, and those who experience a
Divine presence in their lives but do not accept rabbinical authority or belong to a
formal congregation or observe the commandments. Religious people are also far from
constituting a monolithic community. Various liberal trends make it possible to interpret
customs and ceremonies in new ways.”
O judaísmo secular nunca foi, pelo menos ate hoje, um movimento social unitario, nem
constitiu ele uma clara identidade coletiva na atualidade, isto é, um movimento social
capaz de gerar um sentimento de comunidade relativamente fechada, delimitada por
sistemas de crenças e/ou ideologias comuns, com instituições responsáveis pel
manutenção da unidade, homogeneidade e reprodução do conjunto. Isto é. para se
constituir em um movimento social os judeus seculares precisam de um cimento
comum, de uma causa, ideologia, valores -como no seu momento foi a criação do estado
de Israel ou a defesa da cultura Yddish- que os unifiquem a pesar de suas diferenças
individuais. Mas, no momento, o que existe hoje são judeus seculares, isto é indivíduos
isolados, cada um definindo e escolhendo aqueles aspectos da cultura judia que são
relevantes para ele, na base de duvidas constantes, das mais variadas experiências e
constante inestabilidade- ja que o asesgura a estabilidade sao consensos coletivos que
limitam a dissonancia cognitiva e homogenizam os discursos.
Os judeus seculares contemporaneos estao associados a um judaísmo profundamente
instável, por falta de instituições capazes de dar-lhes uma unidade a traves da
elaboração de um denominador comum. Isto faz que os judeus seculares, embora
1 “We enter the Talmud barefoot”, http://www.culturaljudaism.org/ccj/articles/26
3
majoritários em Israel e na diáspora, sejam particularmente frágeis quanto a
institucionalização de seu judaísmo. Os judeus seculares são maioria no povo judeu,
mas minoria nas instituições comunitárias. Em particular a intelectualidade judia esta
totalmente afastada, na sua grande maioria, da vida ativa das instituições judaicas, que
aparecem como conservadoras, quando não reacionárias.
O sentimento de judeidade do judeu secular se expressa geralmente em termos de uma
vontade de dar continuidade a memória de pais ou avos, uma solidariedade com outros
judeus que possam ser perseguidos ou em perigo, mas não encontra expressão simbólica
ou ideológica clara. Assim seria mais rigoroso indicar que a maiora do povo judeu está
constituida por judeus confusos, no sentido de que são pessoas que se sentem judias não
ortodoxas, mas não conseguem definir claramente o sentido deste sentimento. Porque?
Porque como comentamos anteriormente, as ideologias que no século XX permitiam dar
expressão ao sentimento do judeu secular entraram em crise.
Os dois pilares sobre os quais se construiu o judaísmo secular não religioso foram o
socialismo e o sionismo, promovendo ambos uma visão renovada da historia judia. Não
é preciso comentar a crise do socialismo, e, no que se refere ao sionismo ele realizou o
sonho, e, no momento, Israel perdeu o atrativo que tinha antes da criacao do estado e
nas suas primeiras decadas. na época pioneira (minha geração ainda se alimentou da
força mística da noção de chalutz, hoje incompreensível para os jovens).
O judaísmo secular esta intimamente ligado a a uma visao histórica do povo judeu e a
reconstituicao do mesianismo. A propria historia judia, como disciplina de
conhecimento, é produto do judaísmo secular. Ambos pilares hoje estao em crise.
Vivemos um periodo de descredito da ideia do progresso e de temor e incerteza sobre os
ventos da historia. Hoje as novas gerações não encontram um sentido particular seja na
historia em geral e na historia judia em particular. No lugar de Historia com maiuscula
cada um se refugia na subjetividade e procura construir sua propria estoria individual. O
messianismo secular entrou em crise com a desintegracao das grandes ideologias
politicas.
4
O que está faltando? O que pode funcionar como um aglutinador e estabilizador da
identidade judaica secular? A resposta é simples: uma causa ou objetivos comuns e/ou
estruturas institucionais profissionais ou voluntárias, responsáveis pela
organização/reprodução coletiva.
Como e quando o judaísmo secular voltará a produzir movimentos sociais capazes de
renovar o judaísmo? Se alguma certeza podemos ter é que o futuro é imprevisível e que
nunca é uma repetição do passado. O processo de reconstrucao do judaismo secular nao
sera a obra de intelectuais individuais. Estes podem contribuir realizando diagnosticos
dos percursos do passado que possam ajudar a elaborar novas visoes do futuro.
Podemos, no melhor dos casos, identificar algumas tendências no interior do judaísmo
que podem ajudar a atuação dos indivíduos e grupos de judeus seculares neste período
de transição histórica. A nossa contribuicao principal é quebrar os dogmas e camisas de
força intelectual que foram andaimes do judaismo secular no seculo XIX, mas que hoje
sao barreiras para seu desenvolvimento.
1) O novo judaísmo secular será produto de um dialogo critico com o judaísmo religioso
secular, e em geral com a culutral judia redligiosa milenar. Não é casual que o principal
movimento do judaísmo secular, representado pelo rabino Sherwin Wine, partiu de
alguém formado na tradição religiosa liberal.
2) O ateísmo ou agnosticismo não preenchem as necessidades emocionais de dar sentido
a vida. Eles motivaram geracoes que acredtivam no poder da ciencia, da razao e o
progresso num periodo historico em que a religiao tinha poder politico e se confrontava
com os valores da modernidade. O ateismo e o agnoticismo continuam mas em geral
nao motivam para a acao coletiva, nem respondem as necessidades de producao de
sentido e de movilizacao coletiva.
3) O antisemitismo e a solidariedade frente a perseguicoes de judeus continuará a ser
um dos cimentos da identidade judia. Mas o antisemitismo nao pode continuar sendo
presentado como um destino ineluctavel, nem ser associado, implicita ou
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explicitamente, a um discurso/sentimento que separa em forma viceral o judeu do nao
judeu.
4) O Estado de Israel deverá ser um dos pilares do judaismo secular, tanto pela
criatividade potencial de criacao de uma cultura judia secular pelos israelies, como pela
identificacao com o Estado de Israel pelos judeus da diaspora. Infelizmente o conflito
arabe-israeli deformou o proceso de identificacao da diasoira com Israel em torno a
guerra e atrasou o processo de constituicao de um judaismo secular no estado de Israel.
5) A importancia do estado de israel no deve obliterar que os judeus seculares enfrentam
problemas diferentes na Diáspora e em Israel. Em Israel existe um motivação e um
objetivo comum que unifica os judeus seculares: a luta contra a teocratizacao do Estado
de Israel. Na diáspora esta motivação não existe. Por sua vez no Estado de Israel temas
relativos da tradição judaica de uma forma u outra estão presentes no sistema
educacional e no dia a dia da vida do pais. Mais complexo ainda é a questão da
definição de quem é judeu. Em Israel, a causa da lei do retorno, ela define o direito a
cidadania, mobilizando interesses econômicos e políticos que não existem na diáspora.
Na diáspora por sua vez as culturais são muito diferentes afetando os conteúdos do
judaísmo secular. Sendo efetivamente pluralista o judaísmo secular só tem a ganhar
desta diversidade, mesmo reconhecendo que ela possa gerar tensões.
6) Finalmente, sabemos que o judaísmo é um criação geracional. Mais ainda nos tempos
modernos. As primeiras geração de judeus seculares se construíram como uma reação
aos pais, que ‘tinham como referencia um judaísmo ortodoxo, com valores rígidos que
não respondiam aos desafios e expectativas do mundo moderno. Uma boa parte dos
jovens judeus seculares na atualidade não tem nenhuma referencia clara do judaísmo a
partir ou contra a qual definir objetivos. Embora o novo judaísmo secular será
fundamentalmente uma resposta das novas gerações, com propostas adequadas ao novo
contexto histórico, a geração que está saindo de cena tem uma responsabilidade de
apoiar e facilitar e apoiar esta transição, pois se não temos uma proposta clara para
oferecer nem um modelo contra o qual deva-se reagir, podemos transmitir um legado
6
cultural, reconhecendo que o testamento será escrito por aqueles que se disponham a
assumir a herança da tradição judaica secular.

Identidade e Identidades Judaicas

Identidade e identidades Judaicas
Bernardo Sorj*

Para Hershale Grin, Z”L
1) As identidades individuais e coletivas são a forma pela qual a cultura expressa a
finitude humana (a consciência/sentimento do isolamento/separação do resto do
universo, da fragilidade e fugacidade da vida e a certeza da morte),
diferenciando e revinculando indivíduos e grupos com o universo social e a
natureza.
Comentário: A identidade é uma dos caminhos que a cultura oferece para
enfrentar a finitude. Alem do uso de produtos alucinógenos e o álcool que
limitam, as vezes em forma drástica, a consciência de si, varias correntes
espirituais procuram atingir o êxtase ou o esvaziamento do ego pela suspensão
do estado de consciência reflexiva.
2) A identidade social se constrói em torno da identificação com crenças,
símbolos e praticas que delimitam, que criam fronteiras, contendo a tendência à
“mistura”, seja dos indivíduos a se confundir uns com outros, seja dos grupos a
se integrarem. A partir das identidades é possível construir “memórias” e
narrativas de si mesmo e do grupo.
3) Uma identidade social supõe: a) um ou vários critérios que definem as regras
de entrada ao “clube” –que pode ser individual-, b) uma serie de praticas sociais
e sistemas simbólicos que explicam/confirmam a especificidade do individuo ou
grupo, e c) uma autoridade formal (como, por exemplo, um juiz ou um rabino)
ou informal (um consenso compartilhado) que confirme a imagem/definição do
indivíduo ou grupo, seja tanto por ele mesmo ou quanto por outro indivíduo ou
grupo.
2
4) As identidades podem ser: a) internas, isto é auto-definidas ou, b) externas,
definidas pelo outro.
5) As identidades são a base dos sistemas classificatórios dos indivíduos e grupos
sociais, dentro dos quais cada um apresenta uma versão de si mesmo e do outro.
Em outras palavras, a identidade sempre depende de quem o observador e quem
é o observado.
6) As identidades são sempre contigentes, isto é, produto de circunstancias
históricas, sociais e psicológicas. Como os sociólogos gostam de enfatizar, são
construções sociais. Contudo, para os indivíduos que vivem suas identidades
elas não são aleatórias mas o próprio sentido da vida, aquilo que diz qual é seu
lugar “natural” no mundo.
7) As identidades individuais se definem por varias filiações (pertencimentos/
identificações), como as biológicas, sociais ou míticas. As identidades
individuais são sempre múltiplas (por exemplo, familiar, geográfica, política,
religiosa).
8) Tanto as identidades individuais como coletivas dependem de valores
compartilhados. Não existe identidade individual fora de um marco cultural
compartilhado. Nas sociedades tradicionais o espaço da identidade individual
estava fortemente amarrado e limitado pela identidade coletiva e os mecanismos
de imposição via controle social ou da autoridade religiosa/política. Nos tempos
modernos a relação se inverte, exigindo que cada indivíduo considere sua
identidade como um ato volitivo, isto é, uma escolha moral autônoma, levando a
que ela seja vivida como uma escolha pessoal.
* Professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor do Centro Edelstein
de Pesquisas Sociais (besorj@attglobal.net).
3
9) Nas sociedades liberais modernas continua a existir o sentido de “nós”, de
comunidade, só que cada membro do grupo tem o direito de definir o que ele
entende por “nós”. O sentido da identidade deve ser construído individualmente.
Toda delegação de autoridade de poder simbólico (por exemplo a um pastor ou a
um rabino) é um ato de vontade individual que pode ser suspense em qualquer
momento.
10) Uma ou varias identidades, podem ser experimentadas como sagradas (desde
uma religião a um time de futebol), isto é, como forças transcendentais que dão (
e tiram) sentido a vida.
11) A pesar dos mecanismos sociológicos e psicológicos de construção de
identidades serem universais e desvendáveis, as ciências sociais não
desenvolveram explicações igualmente sólidas para compreender porque certas
identidades, em particular as religiosas e étnicas, apresentam uma permanência
no tempo e uma capacidade de sobrevivência as mais diversas transformações
históricas. Em outras palavras, se todas as identidades possuem mecanismos
formais similares de reprodução, os seus conteúdos tem efeitos específicos e
impactos diferenciados.
12) O respeito ao direito de cada um a escolher, construir e viver sua identidade é a
condição de uma sociedade democrática e humanista. O maior perigo a
liberdade humana nos tempos modernos provem daqueles que procuram impor
aos outros o monopólio de decisão sobre suas identidades individuais e
coletivas. O paradoxo e o limite dos valores democráticos é que eles devem
permitir o livre exercício de toda identidade, menos daquelas que objetivam a
supressão da liberdade de escolha.
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13) O judaísmo, ate os tempos modernos, como todas as religiões, construiu sua
identidade numa serie de crenças, mitos, endogamia, ritos e praticas sustentadas
na separação entre o puro e o impuro, entre o profano e o sagrado, entre sua
versão particular como povo escolhido (pois para todas as religiões, os que nela
acreditam são os escolhidos (“fora da igreja não há salvação “) e os outros
povos.
14) Este conjunto de praticas, presentes na bíblia, foram radicalizados pelos rabinos,
de forma a criar as condições de sobrevivência na diaspora. A falta de um
espaço geográfico comum, que naturalmente separasse os judeus dos não judeus,
levou a estender as regras de pureza/impureza a quase todos os atos, ritualizando
todas as praticas cotidianas e assim dificultando a mistura natural que as
condições de vida em diaspora propiciam.
15) O judaísmo rabínico se construiu como um sistema identitátario que definia: a)
as regras de entrada (conversão ou consangüinidade –inicialmente patrilinear e
posteriormente matrilinear-), b) um conjunto de praticas e crenças (leis sobre
pureza/impureza, ritos, endogamia, narrativas sobre a sentido da historia,
esperança messiânica, sistemas de transmissão inter-geracional de
conhecimento, expectativa de um outro mundo e no renascimento nos tempos
finais) , e, c) um sistema de autoridade centrado na autoridade rabínica
(exercida nas grandes decisões sempre em forma coletiva e por delegação da
própria comunidade, já que no judaísmo o rabino não possui nenhum status
teológico particular nem o rabinato apresenta uma estrutura hierárquica).
16) Os tempos modernos explodiram as bases do judaísmo rabínico. A grande
maioria dos judeus abraçou os valores da modernidade. As possibilidades
abertas pela igualdade perante a lei e de participação em todas as áreas da vida
social, representou para os judeus, um grupo que tinha sido oprimido durante
5
séculos, uma chance única de reconhecimento, de dignificação e mobilidade
social.
17) O judaísmo moderno separou a) os judeus e o judaísmo, b) os judeus do
judaísmo e, c) o judaísmo de uma fonte ultima de autoridade . Separou judeus e
judaísmo, pois enquanto na versão tradicional cada judeu procurava realizar uma
imagem compartilhada do judaísmo, na sociedade moderna cada individuo
realiza sua versão do que seja para ele judaísmo. Separou os judeus do judaísmo
porque na vida moderna o judaísmo ocupa somente uma parte do espaço
existencial de cada judeu, que se sente membro de outras coletividades de
destino (p.ex.., circulo profissional, pais onde habita, classe social, humanidade).
Finalmente retirou do judaísmo uma fonte ultima de autoridade coletiva,
transferindo a consciência individual à definição do que seja judaísmo, portanto
pluralizando o judaísmo.
18) Na passagem para a modernidade foi realizado uma serie de esforços para
integrar judaísmo e modernidade num conjunto coerente. Estas versões
secularizantes do judaísmo se deram tanto na religião (judaísmo liberal e
conservador) como a traves de ideologias políticas (bundismo –isto é, socialismo
idishista- e sionismo). Em todas estas versões procurou-se integrar o judaísmo
com os valores da modernidade, reinterpretando, diminuindo ou eliminando as
praticas centradas no código puro/impuro, judeus/não judeus.
19) As novas versões religiosas e seculares do judaísmo a partir do século XVIII
procuraram enfatizar as continuidades entre a tradição judaica e os valores da
modernidade, de forma a facilitar a integração social dos judeus e sua aceitação
pelos não judeus. Assim o fazendo terminaram minimizando ou negando os
particularismos da identidade judaica. Esta orientação do judaísmo nos séculos
XIX e XX, supunha que a modernidade era um conjunto de valores universais e
coerentes entre sim, desconhecendo a diversidade de identidade e lealdades
particularistas com as quais deve conviver o homem moderno (e possivelmente
6
todo individuo em qualquer sociedade). Inclusive o discurso universalista - que
afirma uma visão inclusiva da humanidade- é particularista, pois apresenta uma
visão possível entre muitas outras do que sejam valores universais. Na pratica o
homem moderno apresenta múltiplas identificações e lealdades (familiar, local,
nacional, religiosa, política, profissional) que não são reduzíveis a um todo
coerente e que por vezes estão em contradição entre si. Em suma, toda
identidade individual tem dimensões esquizofrênicas. Se os judeus, na
modernidade, sofreram em particular do caráter esquizofrênico de toda
identidade é porque foi cobrado deles lealdades múltiplas e particularismos que
normalmente são aceitos quando se trata da maioria da população.
20) O judaísmo, desde suas origens aos tempos atuais, se construiu em torno da
experiência de uma tribo/grupo/povo/religião pequena dentro de um entorno
hostil, dominado por grandes impérios ou da convivência como uma minoria em
contextos diasporicos. A memória do judaísmo, no relato mítico, histórico ou na
experiência psíquica individual, desde a saída do Egito aos juizes e profetas, da
destruição do templo ao holocausto, é de resilience/endurance, frente a
adversidade (inclusive a festa mais “alegre”, Purim, o carnaval judaico, tem
como motivo que os judeus foram salvos pela Rainha Esther do genocídio!!)
21) O longo debate sobre o que define o judeu moderno, o anti-semitismo, isto é, um
elemento externo, ou um conteúdo interno, é um falso debate. Na construção da
cultura judaica (e isto vale para todo outro povo) a perseguição não é nunca uma
externalidade, uma imposição de fora frente a qual os judeus passivamente se
posicionam, aceitando ou fugindo do judaísmo. A perseguição é sempre uma
positividade, o perseguido nunca é simplesmente uma vitima passiva. A partir da
perseguição os judeus construíram uma cultura e um saber pratico de
sobrevivência, uma solidariedade de grupo –explicita ou não-, instituições e
narrativas, dentro das quais o externo foi reelaborado e transformado em formas
de agir e de pensar, em componentes psíquicos inconscientes nos quais
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convivem insegurança e capacidade de resistência, traumas auto-destrutivos e
sabedoria criativa, presentes em forma mais ou menos diluída entre aqueles que
a biografia (geralmente através da família) os levou a receber esta herança
cultural.
Comentário 1: Que alguém tenha recebido está herança não o torno
automaticamente judeu, o que depende de uma decisão pessoal.
Comentário 2. Em relação a aquelas pessoas de ascendência familiar judia mas
que não se definem como judeus, elas não possuem uma identidade judia. Pode
se argumentar que um olhar externo, geralmente anti-semita, pode defini-los
como judeus. Neste caso o judaísmo não é uma identidade mas um estigma, pois
não expressa a livre escolha da pessoas. Se alguém teve pais judeus, por
exemplo, eescolhou ser cristão, e mesmo assim morreu no Holocausto, não
significa que ele morreu como judeu. Ele morreu como um cristão assessinado
pela loucura sanguinária de uma ideologia que não aceitava que as pessoas
escolhessem sua identidade.
22) Para a grande maioria dos judeus modernos a identidade judaica apresenta as
seguintes características: a) ela é uma identidade a tempo parcial, ou seja, a
nível consciente a identidade judaica aparece só circunstancialmente, b) ela é
modular, isto é a tradição judaica se transforma num Lego onde cada um
reconstrói seu modelo personalizado, c)) ela é mutante, acompanhando as
permanentes transformações da sociedade, e, d) ela é dependente do ciclo de
vida, das relações inter-geracionais e de passagens na vida pessoal .
23) Para o homem/mulher moderno/a o que seja o judaísmo e ser judeu é uma
questão pessoal, intransferível a uma autoridade externa. A discussão sobre o
que é a essência do judaísmo pertence as guerras culturais no interior do
judaísmo, que dependem do contexto histórico e da capacidade política de ação
dos diferentes grupos em confronto.
8
24) Embora a definição do que seja judeu e o judaísmo seja, do ponto de visto
sociológico e ético moderno, uma questão individual, ainda permanecem em
aberto as dimensões políticas associadas a toda identidade coletiva, ou seja a
tendência do grupo a definir regras/barreiras de entrada, ritos de passagem e
pertencimento. Esta problemática se coloca em forma radicalmente diferente na
diáspora e no Estado de Israel. Na diáspora existe espaço para infinitas
comunidades judaicas, cada uma com seus critérios próprios e em dialogo
implícito ou explicito com as outras. No Estado de Israel a definição do que seja
judeu tem outro tipo de conseqüência, ela determina o direito ao acesso a
nacionalidade israelense (no momento convivem em Israel duas definições de
judeu, a dada pela Suprema Corte de Justiça, que determina que qualquer um
com um avó ou avô judeu tem direito a cidadania, e a definição do rabinato
ortodoxo, a quem o estado entregou a adjudicação interna de nacionalidade e
que mantém uma definição tradicional rígida).
Rio de Janeiro, Maio de 2004

SOCIABILIDADE BRASILEIRA E IDENTIDADE JUDAICA

SOCIABILIDADE BRASILEIRA E
IDENTIDADE JUDAICA

As origens de uma cultura não anti-semita
Bernardo Sorj

Introdução
Aparentemente, o estudo da comunidade judaica no Brasil não apresenta maior
interesse sociológico. Um grupo pequeno, que não chega a ser 0,1% da população,
ocupando maioritariamente setores sociais médios sem maior peso institucional na
vida nacional, a comunidade judaica aparece como mais um componente do lado
bem- sucedido e moderno, do Brasil contemporâneo. Acreditamos, porém, que a
análise da dinâmica de integração dos judeus no Brasil pode ser particularmente
instrutiva tanto para a compreensão da cultura brasileira, quanto do judaísmo e do
anti-semitismo modernos.
Assim, a cultura brasileira não discrimina o imigrante, pelo contrário, o valoriza.
O país conseguiu absorver o maior contingente de população japonesa fora do
próprio Japão, milhões de árabes e menor quantidade de judeus, sem gerar conflitos
étnicos ou práticas preconceituosas. Trata-se de um feito admirável, possivelmente
sem similares na história contemporânea. Grande parte destes imigrantes, numa
sociedade com altos índices de crescimento econômico e mobilidade social,
conseguiram rapidamente, graças aos valores e conhecimentos trazidos de seus
lugares de origem, ascender socialmente e ocupar posições importantes nas classes
médias e elites do país. A ascensão social dos imigrantes no lugar de gerar ideologias
racistas ou sentimentos antiétnicos, é vista como fator positivo e valorizador da
pessoa. Isto porque a cultura, a identidade e o mito de origem brasileiro favorecem a
mudança, o novo e a transformação que permitirá realizar suas potencialidades como
país do futuro.

Este artigo procura desenvolver três temas, em forma de hipóteses preliminares.
Em primeiro lugar, trataremos de compreender o fenômeno particular do limitado
impacto do anti-semitismo no Brasil contemporâneo. A historiografia e sociologia
judaicas do século XX têm sido especialmente sensíveis aos fenômenos anti-semitas
nas diferentes sociedades onde radicam-se judeus. Elas têm se preocupado muito
pouco, porém, em compreender porque em certas sociedades o anti-semitismo é
reduzido ou quase inexistente. Em segundo lugar, procuraremos indicar algumas
características do judaísmo brasileiro geradas pela integração na cultura e sociedade
local. Finalmente procuraremos indicar certos padrões dominantes nos escassos
estudos sobre o judaísmo brasileiro contemporâneo, numa perspectiva comparada
com o caso argentino.
Racismo e Judeus no Brasil
Partimos do pressuposto de que o Brasil é uma sociedade com baixos níveis
de discursos ou práticas anti-semitas. Este pressuposto tem como base a informação
cotidiana divulgada pelos meios de comunicação, relatos de imigrantes e a experiência
empírica do autor como as avaliações de organismos especializados. O Antisemitism
World Report indica que "There is no indication of state-sponsored antisemitism
since the end of Vargas regime (l945, B.S.)" (p.10-11). "Brazil has little popular
antisemitism". (p. 13) (The Institute of Jewish affairs and the American Jewish
Committee, l995). Nos dois grandes centros onde se concentram a grande maioria
dos judeus, Rio de Janeiro e São Paulo, práticas ou discursos anti-semitas que afetem
seja a qualidade de vida e convivência social, ou que influenciem as chances efetivas
de mobilidade social, são bastante excepcionais. Neste sentido, e voltaremos mais
adiante a este ponto, o judaísmo no Brasil encontra-se numa situação diferente do
resto da América Latina.
A explicação básica para a falta de anti-semitismo no Brasil pode ser
procurada na particular ideologia brasileira do branqueamento (Skidmore, l974).
Nesta ideologia, o branco é o ideal a ser alcançado, de forma que as outras raças,
particularmente a negra, poderão “melhorar”, via miscigenação , até alcançar o
branqueamento.
Assim, na medida em que os judeus são aceitos como parte da raça
branca - o que só foi questionado por alguns intelectuais brasileiros associados a
ideologia fascista nas décadas de 20 e 30 – eles passam a ser parte da solução, e não
um problema. Neste caso, embora a sociedade brasileira seja racista, antinegra, esse
racismo não atingiria outras etnias, como os judeus.
Esta hipótese nos parece cobrir parte essencial da explicação a respeito do
motivo de o Brasil não ser uma sociedade anti-semita, mas ela é insuficiente para
compreender as formas específicas de integração, exigindo uma elaboração maior do
debate em torno da ideologia do branqueamento e suas implicações sobre as
diferentes formas de racismo, inclusive o antinegro.
As interpretações da formação sociocultural do Brasil no século XX se dividem
em duas grandes linhas de força. Por um lado estão aqueles que enfatizam o caráter
integrador da miscigenação, a cordialidade da psicologia coletiva, o sincretismo
cultural, a porosidade social, em suma, uma sociedade aberta e tolerante, cujas
origens remontam à particularidade da colonização lusitana, com predomínio de
intenso intercambio sexual com as populações negras e nativas. No outro lado temos
a versão que enfatiza as características racistas da estrutura social brasileira, na qual o
negro não só ocupa os extratos mais pobres como sofre discriminação racial, tendo
diminuídas suas chances de mobilidade social.
O racismo particular do brasileiro seria a ideologia do branqueamento, pelo
qual o negro, através da mistura racial, passa a ser parte do mundo branco. Esta
ideologia, dominante no Brasil, se expressaria na valorização dos filhos “mais
brancos” de famílias com origem africana, e seria um desenvolvimento específico do
moderno racismo europeu de finais do século passado. Como mostra Skidmore
(1974), as elites brasileiras influenciadas pelas ideologias racistas deram uma
interpretação particular para estas. Enquanto racistas europeus acreditavam que a
miscigenação de raças no Brasil levaria a deterioração e degeneração racial do
conjunto da sociedade, a ideologia brasileira do branqueamento supõe que a mistura
racial, no lugar de ser uma perda de qualidades brancas, seria um ganho de
qualidades para os negros, que passariam a integrar o plantel da raça virtuosa pela
perda das características da raça viciada.
A obra de Roberto Da Matta (1979, 1989) é uma das que com mais criatividade
persegue a tese de que no Brasil, por trás de uma ideologia de cooptação universal,
afabilidade, sincretismo e estrutura jurídica liberal, se esconde uma estrutura de poder
hierárquica, profundamente desigual e racista. O argumento de Da Matta é o de que
no Brasil predomina a fábula que apresenta brancos, negros e índios como sendo
componentes equivalentes, no qual as três raças constituem o fundamento que deu

lugar a um Brasil miscigenado e predisposto ao cruzamento e à tolerância racial. Da
Matta procura mostrar que a sociedade portuguesa, cujas estruturas sociais foram
transferidas para o Brasil, era uma sociedade com hierarquias fortemente marcadas,
católica, dominada pelo formalismo jurídico, mercantil, e com laços de dependências
entre as diferentes camadas dominantes. A fábula das três raças constituidoras do
Brasil teria a função de integrar idealmente a população, depois da abolição, num
marco comum, e que através do branqueamento, atingiria, algum dia,
homogeneidade e harmonia. A ideologia da integração das raças, seja no plano
sexual, da música, da mulher, do carnaval, mascararia a realidade das profundas
diferenças de poder. Além disso, o próprio pressuposto da integração pelo
branqueamento é profundamente racista e negador de uma identidade negra.
Da Matta contrapõe a ideologia da democracia racial e o aparelho jurídico de
igualdade entre os cidadãos a uma prática social onde dominam profundas
desigualdades, e onde a hierarquia do “você sabe com quem está falando” substitui a
idéia de cidadãos com direitos iguais.
Assim, segundo Da Matta, a sociedade brasileira é profundamente hierárquica,
sustentada na desigualdade entre as pessoas, onde os laços de dependência, pelas
posições diferentes ocupadas na hierarquia social, ao mesmo tempo que permitem
uma sociabilidade fundada na intimidade, confiança e consideração, desconhece os
valores individualistas e igualitários. Nesta sociedade não há necessidade de
segregação porque as hierarquias asseguram a superioridade do branco e a
identificação do dominado com o dominador. O racismo moderno anglo-saxão, em
contrapartida, seria num contexto de valores igualitários e individualistas uma forma
de assimilar a diferença, porque em princípio é dominante a crença efetiva de que
somos todos iguais. A segregação moderna pelo menos reconhece a alteridade do
outro, enquanto no sistema hierárquico todo mundo é parte de um conjunto com um
lugar desigual específico e as diferenças são relativas à posição ocupada por cada
um. Este sistema permite todo tipo de graduação, vários níveis de “negritude”, no
lugar de oposições polares.
Sociedades hierárquicas como a brasileira, integram todo o mundo mantendo
simultaneamente a desigualdade, enquanto no sistema igualitário e individualista a
diferença só é suportável via segregação. Uma sociedade hierárquica é uma
sociedade de mestiços onde existem as mais variadas cores de pele, no lugar de raças
opostas. É o domínio do fenotipo e não do gene originador, das gradações de pele
no lugar da pureza do sangue. A sociedade hierárquica brasileira, embora desigual,
permite a conciliação e a cooptação das diferentes camadas que conseguem caminhar
no sentido do branqueamento. A divisão da sociedade em infinitas camadas de
nuanças de pele permite fugir ao confronto, pois neutraliza a formação de identidades
nítidas. O Brasil seria, portanto, uma sociedade de um racismo moldado na
hierarquia e não no individualismo.
O argumento de Da Matta não será discutido em detalhes, porém interessa
indicar o que ele tem, além de iluminador, de problemático para a compreensão da
dinâmica interétnica no Brasil. Interessa-nos em particular questionar aqueles
aspectos onde Da Matta opõe ao modelo hierárquico brasileiro, o modelo
individualista e igualitário anglo-saxão, a sua tendência a cristalizar padrões culturais
perdendo de vista as mudanças sociais ligadas particularmente aos processos
históricos de modernização e desconhecendo o caráter efetivamente contraditório da
mitologia cultural brasileira, onde convivem componentes antiigualitários com um
futuro coletivo comum utópico, assim como práticas sincréticas e ecumênicas.
A apresentação de Da Matta do mundo “anglo-saxão” como um todo coerente,
não se sustenta. Na verdade, elementos contraditórios entre o nível político e práticas
sócio-culturais são uma característica típica de todas as sociedades modernas. É
suficiente mencionar os estudos de sociologia da sociedade francesa feitos por
Bourdieu e toda a tradição anglo-saxônica que mostra como as sociedades liberais
ocidentais se sustentam em valores tradicionais que lhe antecedem, e que tem como
obra precursora os estudos de Weber sobre o protestantismo nas origens do
capitalismo moderno (Bell, 1979).
No lugar de se ver na contradição entre a ideologia político-jurídico liberal
brasileira e as práticas socioculturais hierárquicas um simples processo de
mistificação no qual o primeiro plano encobre a realidade do segundo, é muito mais
frutífera a análise da interação destes dois planos, tendo ambos efeitos reais no
processo social.
Numa sociedade movida por uma ideologia consumista o preconceito racial
passa a ser cada vez mais subordinado a capacidade aquisitiva do agente social. A
definição do que seja branco cada vez mais se correlaciona com a posição
econômica do indivíduo. As transformações sociais no Brasil contemporâneo geram
uma sociedade com índices altíssimos de mobilidade social e renovam a composição
social das elites econômicas e políticas. Novos processos sociais, por sua vez,
como o empobrecimento econômico e cultural das populações pobres (com forte
participação de negros e nordestinos) e a violência urbana geram novos focos de
racismo.
Da Matta está errado em afirmar que a sociedade brasileira é cordial porque é
hierárquica. A segunda característica não pressupõe a primeira. As sociedades
hierárquicas em geral desconsideram, e mesmo repudiam, os estratos inferiores, com
os quais têm pouca ou nenhuma comunicação. A sociedade brasileira é
simultaneamente hierárquica e aberta, profundamente desigual e promotora da
mobilidade social e da cooptação, é insensível com o coletivo e solidária com o seu
grupo de referência. As sociedades hierárquicas tradicionais sempre tiveram um forte
componente de fatalismo e fortes crenças na inevitabilidade e eternidade das
diferenças. No Brasil, pelo contrário, as hierarquias se sustentam na expectativa da
mobilidade social e de um futuro diferente. O próprio padrão de sociabilidade
brasileira, gregário, lúdico, pouco individualizado, assim como seu sincretismo
religioso, são expressões da forte absorção de elementos da cultura africana.
Porém, o que nos parece mais importante neste contexto é que o relato da
mitologia nacional brasileira aparece incompleto na apresentação de Da Matta. Se por
um lado ela supõe um claro componente racista na idéia do embranquecimento, ao
mesmo tempo ela também inclui uma expectativa de homogeneização no futuro, que
é alheio a uma sociedade efetivamente hierárquica. Em outras palavras, convivem no
interior do mito nacional brasileiro uma idéia de pecado original - a composição negra,
índia e marginal lusitana da população colonial -com a esperança de que o tempo,
graças à riqueza infinita e beleza edênica de sua natureza, permitirá eliminar estas
manchas pela recriação de uma sociedade integrada e homogênea2. Esta visão do
futuro limita e qualifica os componentes racistas da cultura brasileira.
A visão de uma sociedade que se sustenta na possibilidade de um futuro ideal
comum e não na idealização do passado, é uma revolução copernicana em relação à
toda a mitologia moderna dos Estados nacionais. Esta visão explica a quase
inexistência de anti-semitismo, ou a fragilidade de ideologias antiimperialistas e que
diferencia o Brasil do resto da América Latina.
Uma sociedade orientada para o futuro é uma sociedade que valoriza o novo e
que não tem medo da inovação. O mito de origem do Brasil que encontra a origem
dos problemas do país no passado, na escravidão e na colonização lusitana, e que
acredita que o paraíso não foi perdido mas que se encontra no futuro, produz uma
visão totalmente diferente dos valores da mudança e do estrangeiro. Na medida em
que todos os mitos de origem nacional supõem uma fase áurea num passado remoto
que nutre e sustenta os valores nacionais, eles criam uma relação problemática com
o novo, identificado, quase sempre, com influências exteriores e o estrangeiro. O
“nacional mais puro” é aquele que se encontra ligado mais profundamente às raízes e
ao passado. Quanto menos se possuem estas raízes, mais longe se está dos “valores
nacionais”. No mito de origem brasileiro, pelo contrário, o passado é desvalorizado e
sua proximidade com este implica numa identificação negativa. Não é à toa que no
Brasil predominam as piadas sobre negros e portugueses como expressão do
passado a ser rejeitado. Num contexto em que se valoriza o novo, a mudança e o
2 Em relação à valorização da natureza pelos brasileiros cf. Carvalho, J.M., 1997.
futuro, o estrangeiro, no lugar de ser portador de valores estranhos à nacionalidade,
passa a ser o principal construtor desta.
Enquanto nos mitos de origem nacional fundados no passado o inimigo é
sempre externo e personificado nas “influencias estrangeiras”, no mito de origem
brasileiro, do “país do futuro”, o inimigo é interno, o próprio passado, personificado
nos agrupamentos humanos associados a ele. É o passado que se trata de erradicar,
para que a nação encontre seu potencial. Assim, por exemplo, se as ideologias
antiimperialistas terceiro-mundistas se propunham superar e negar os aspectos do
passado associados ao estrangeiro - agressivo e explorador -, para que o povo realize
o seu potencial reprimido pela história, no caso brasileiro foi sempre dominante a
visão do passado percebido como a fonte de todos os vícios, a que deveria ser
superado para que possam ser realizadas as virtualidades do país, proporcionadas
pelas suas riquezas naturais, à espera de serem exploradas sob forma racional no seu
potencial de gerar prosperidade e riqueza para todos.
Toda cultura e mitologia nacional sustenta-se em experiências históricas e em
processos políticos e sociais, que a reforçam ou transformam. A fragilidade de
movimentos românticos e saudosistas no Brasil está associada a fluidez e falta de
confrontamento violento no interior das elites, que não permitiu cristalizar setores
ressentidos e frustrados com as transformações sociais e desejosas de retornar a um
passado idealizado. A classe dominante brasileira neste século não fez questão de
associar suas origens à potência colonizadora para distinguir-se do resto da
população nativa ou imigrante. A relação negativa com o passado limitou a
formação de uma elite “tradicional”, cujo prestígio se basearia em raízes “profundas”
e que encarnaria a nacionalidade. Igualmente o papel econômico de São Paulo,
liderado por grupos de migrantes, o cosmopolitismo do Rio de Janeiro, a inexistência
de guerras ou inimigos externos relevantes, as altas taxas de crescimento econômico e
a mobilidade social e espacial da população, todos eles convergiram para eliminar ou
enfraquecer tendências xenófobas e românticas.
A ideologia “Brasil - país do futuro”, se atualizou nos anos 50 pelo
desenvolvimento de novas classes médias, geradas pelo processo de industrialização
e modernização. As novas camadas que emergiram neste período são sustentadas
num processo de crescimento econômico com taxas poucas vezes atingidas por
outros países. Confiantes na capacidade da indústria, da ciência e da tecnologia em
assegurar progresso social, estas camadas não só se afastaram da ideologia racial
como valorizaram e absorveram nas artes expressões populares, ligadas em boa
medida à população negra. As novas ideologias emergentes procuraram explicar os
males do Brasil com referência exclusiva a processos econômicos e políticos com
total exclusão do tema racial. Se a prática da valorização do branqueamento se
manteve, seu discurso de sustentação ideológica deixou de ser legítimo.
Somente nos anos 80 e 90, com os períodos de estagnação econômica,
desemprego crônico e aumentos de índice de criminalidade, começaram a surgir,
ainda que marginalmente, expressões de discursos racistas, antinordestinos e
antinegros.
O Brasil, como os brasileiros constantemente lembram, é um país sem
memória. Aliás, esta é a única lembrança cultivada. Um país que alimenta a
impunidade - nem a lei nem a memória condena atos passados -, que joga
aparentemente toda experiência coletiva no esquecimento, parece ser, sem dúvida, um
povo sem memória. Mas a “falta de memória” não expressa a falta de um
mecanismo que deveria existir: ela é um produto histórico, construído socialmente,
um mecanismo ativo, positivo, de uma sociedade que rejeita o passado como algo
lastimoso, errado. A desvalorização do passado tem, por outro lado, efeitos
perversos: não é possível construir um futuro se não se aprende do passado. Parece
quase uma inversão da situação em que sociedades presas ao passado não
conseguem criar um futuro diferente, obtendo em ambos os casos resultados
similares.
Enquanto os mitos de origem que se sustentam na idealização do passado
geram ideologias românticas conservadoras, antimodernas e antimercantis (o mercado
é sempre visto como introdutor do novo e corruptor das tradições), a valorização do
futuro faz do Brasil um país pouco permeável a este tipo de ideologia, e elas têm
baixíssima expressão e são quase inexistentes no Brasil contemporâneo. Desta
forma, o estrangeiro no Brasil em vez de simbolizar o perigo representa o progresso,
as novas idéias e as práticas que poderão ajudar a sociedade a realizar seu destino de
país do futuro.
No caso particular dos judeus, um outro fator que poderia sustentar
sentimentos anti-semitas, o antijudaísmo que a igreja católica alimentou até
recentemente, também dilui-se no contexto de uma sociedade onde predomina o
sincretismo religioso. Estes sincretismo e diversidade religiosa que expressam a
efetiva interpenetração de culturas no Brasil pelo fraco desempenho dos aparelhos
ideológicos das classes dominantes, atuam, também ele, nos sentidos de uma
absorção do novo, de não discriminar o diferente e de não desenvolver preconceitos
frente a outras formas religiosas. As práticas sincréticas no Brasil igualmente
expressam um universo onde a integração do outro não supõe a sua eliminação e sim
sua absorção.
O Preço da Integração Brasileira
Derrubadas as muralhas das autonomias jurídica e organizacional das
comunidades judaicas tradicionais, o judaísmo moderno passou a interpenetrar-se
com a sociedade local de forma tal que a identidade judaica, individual e coletiva,
passou a ser parte integrante da sociedade nacional onde ela se encontra. Como já
mostrou Salo Baron, o judaísmo sempre se desenvolveu em contato, reação e
apropriação das influências do meio ambiente gentil. O que é novo na sociedade
contemporânea é a diluição das barreiras institucionais que até então filtravam e
limitavam o impacto do meio externo. Assim, embora sempre houvesse uma
pluralidade de identidades judaicas locais na diáspora, estas nunca chegaram à
intensidade integradora do mundo moderno. A modernidade para o povo judeu
implicou numa barganha na qual recebia igualdade de direitos e abria mão de suas
instituições jurídicas e de vida comunitária diferenciada. O direito à cidadania
significou para os judeus a aquisição de uma identidade que os fazia parte de uma
nova totalidade: a sociedade nacional. A modernidade implicou a separação
existencial e política entre o indivíduo judeu e sua comunidade, quebrando os
mecanismos de reprodução e socialização “natural” e colocando assim como uma
questão permanentemente em aberto a continuidade da vida judaica e do sentido da
identidade judaica.
A integração dos judeus no Brasil mantém naturalmente similaridades com os
processos das outras regiões do mundo moderno, porém as especificidades da
cultura e sociedade brasileira determinam o perfil particular das instituições e
identidade do judeu brasileiro.
O Brasil, para o imigrante judeu vindo de regiões onde foi permanentemente
discriminado e perseguido, teve muitas características de terra prometida. Ele se
integrou na cultura nacional, passando a compor, na sua maioria, as classes médias,
que se orgulham do fato de serem brasileiras. A sua rápida absorção na sociedade
teve, como contrapartida, a constante erosão das fronteiras diferenciadoras e das
tradições próprias. Uma sociedade que valoriza a sociabilidade gregária em torno de
valores de convivência, que valoriza o lúdico no lugar de discursivo, ou o artístico no
lugar da reflexão conceitual, é particularmente não condutiva para a constituição, na
modernidade, de identidades étnicas diferenciadas.
A identidade judaica moderna, que se constituiu em cima de um esforço autoreflexivo
e como resposta ao anti-semitismo, não encontrou no Brasil condições
propícias para seu desenvolvimento. Numa sociedade em que a integração social se
dá ao nível de relações pessoais intensas, a distinção entre o público e o privado é
frágil ou quase inexistente. Mas é na distinção entre o público e o privado, que no
Brasil tem um espaço limitado, que se sustenta o desenvolvimento das novas formas
de judaísmo na modernidade. Numa sociedade em que a “privacidade” não é um
valor consolidado, não há espaço para desenvolvimento de uma consciência
individual diferenciada - e angustiada -, e nem para a procura de raízes identitárias.
Ser brasileiro é “curtir” a vida, procurar nos amigos um desafogo para os dramas
existenciais e estar aberto ou ser muito tolerante a todas as formas de tradições
religiosas e experiências místicas. Isto pouco se enquadra nas tradições judaicas de
monoteísmo rígido, diferenciação ritual extrema entre o mundo judeu e não judeu e
uma mitologia que se sustenta na valorização do passado, do sofrimento coletivo e na
flexibilidade e angústia existencial.
A confirmação desta hipótese pode ser verificada, inversamente, pelo fato de
a comunidade do Rio Grande do Sul, embora muito menor que a do Rio de Janeiro e
a de São Paulo (em torno de 20.000 indivíduos) apresentar o único caso de uma
fundação cultural com um certo dinamismo (é a terra de origem do único romancista
com uma obra literária com temas judaicos, Moacir Scliar). Isto porque o Rio
Grande do Sul tem uma composição étnica predominantemente européia, com forte
tradição localista, que cultua as tradições do passado “gaúcho”, valorizando a
reflexividade étnica e onde o anti-semitismo parece ser mais presente 3 .
Enquanto a cultura brasileira cultiva o esquecimento, a cultura judaica se
sustenta na lembrança. A cultura judaica é uma cultura de angústia. Angústia implica
insatisfação com o presente, vontade de mudar, enquanto a cultura popular brasileira,
enfatiza o “deixa pra lá”, viver o presente e esperar que surjam dias melhores.
Enquanto o judaísmo se constitui numa atitude de “voluntarismo pessimista”, a
cultura brasileira é de um “fatalismo otimista”, excelente antídoto para a depressão
embora alimente irresponsabilidade social e a aceitação do status quo. A cultura
brasileira, graças à influencia africana, tem no corpo e nas expressões artísticas a sua
principal linguagem de comunicação, enquanto no judaísmo a hegemonia é a do
conceito e da abstração.
3Inclusive as nuances que diferenciam o judaísmo paulista do carioca estão associadas a diferentes níveis de intensidade
de dominância dos mitos nacionais brasileiros. Rio de Janeiro, capital do Brasil nos dois ultimos seculos (até 1960), é a
cidade que mais encarnou a mitologia nacional brasileira. São Paulo, que recebeu grande parte de seu contingente
populacional no século XX, mantém identidades étnicas mais demarcadas.
2A outra vertente que aproxima Bonder da sociedade brasileira, é um forte componente de literatura de auto-ajuda em
seus livros: no Brasil, como nos Estados Unidos, os livros de não-ficção mais vendidos são predominantemente deste tipo.
Uma cultura que não teme, e que pelo contrário, confia no futuro e acredita no
amanhã, é de um fatalismo otimista e é centrada no presente, pois o futuro não
preocupa e o passado não oprime. Na tradição judaica, pelo contrário, o passado -
seja na elaboração mitológica ou na memória histórica ainda presente -, faz do futuro
algo temido, fonte de incertezas e angústia. O presente se transforma num espaço
de preparação para futuras calamidades e de lembrança do passado, portanto
esvaziado de conteúdo ou realidade própria. Se a convivência da mitologia judaica e
brasileira não deixa de ser altamente terapêutica para os judeus, a elaboração de uma
síntese implica num verdadeiro desafio.
O judaísmo brasileiro beneficiou-se do sincretismo e também participa dele.
Embora não existam estudos quantitativos, a absorção de crenças e práticas espíritas
e predisposição em utilizar serviços de curanderia originados de outras crenças é
bastante difundido entre os membros da comunidade. A socialização familiar e
particularmente a educação formal judaica, contudo, ainda estão centradas na criação
de identidade via lembrança das perseguições e do antisemitismo sofrido na historia,
o que gera uma certa dissonância entre o discurso da tradição e a experiência efetiva
dos judeus no Brasil.
Nas comunidades judaicas as elites econômicas mimetizam em boa medida as
características do resto da classe dominante, incluindo a falta de um sentido público,
a baixa predisposição ao mecenato e ao desenvolvimento de fundações de incentivo à
cultura e ao conhecimento. Do ponto de vista da criação e cristalização de expressões
culturais próprias, instituições e reflexão intelectual, o judaísmo brasileiro é de uma
pobreza atroz. Esta pobreza de expressão coletiva sustenta-se no sucesso de sua
integração individual. O judaísmo brasileiro, apesar de seu número limitado, teria um
potencial de produzir formas revolucionárias de recuperação da mitologia e tradições
judaicas dentro de um espírito de diálogo, confraternização e falta de anti-semitismo.
Este potencial, porém, dificilmente se realizará. Para isto convergem várias forças
internas limitadoras e a sociedade brasileira com sua força integradora.
A frágil comunidade judaica brasileira ficou totalmente exposta à colonização
pelas tendências ideológicas e institucionais provenientes de Israel e dos Estados
Unidos. Finalmente, a tendência de globalização cultural das classes médias - na qual
os judeus estão maioritariamente inseridos -, dilui ainda mais as chances do
desenvolvimento de uma tradição cultural judaica brasileira. Assim, embora
claramente exista uma identidade nacional judaico-brasileira, isto é, judeus que se
identificam com a cultura nacional e possuem uma forma judia de serem brasileiros e
uma forma brasileira de serem judeus, ela não consegue cristalizar maiores expressões
culturais ou institucionais de sentido coletivo.
Uma sociedade, onde mesmo na vida acadêmica predominam a cordialidade e
as relações mútuas de dependência-clientelismo, e que portanto foge à confrontação
e à individualização do debate intelectual, não favorece o desenvolvimento de um
judaísmo discursivo-racional. É nas dimensões artísticas e místicas da cultura
brasileira onde o judaísmo poderia encontrar um espaço maior de interação. É
sintomático que o rabino Nilton Bonder, possivelmente o único autor com obras
sobre judaísmo lidas por um amplo público judeu e não-judeu, explore a tradição do
pensamento místico judaico4.
Isto obviamente não implica que a comunidade judaica tenha se diluído no
característico amorfismo institucional brasileiro. Ela manteve e consolidou um
sistema institucional que dá continuidade às suas tradições de valorização do ensino
judaico, de solidariedade comunal e de apoio ao Estado de Israel.
Estudos Judaicos no Brasil
A agenda das Ciências Sociais no Brasil, nas últimas décadas, deu pouco
peso ao estudo do racismo ou das etnias de imigrantes que constituem a sociedade
brasileira. A explicação para este fato se encontra, em boa medida, nos fatores
mencionados anteriormente, de uma cultura nacional pouco disposta a valorizar a
diferença e que renega as formas de racismo explícito.
Outros fatores convergiram para consolidar esta falta de preocupação. Na vida
acadêmica, os estudos étnicos, em sua maior parte, se sustentam, no mundo todo,
em financiamentos e no interesse dos próprios integrantes das etnias ou dos poderes
públicos com preocupações relativas a conflitos étnicos. Como temos visto, no
contexto brasileiro a auto reflexão diferenciadora não é particularmente valorizada nem
as elites “étnicas” se predispõem a atos de generosidade que incentivem este tipo de
trabalho. O Estado, até recentemente, não tinha nenhuma preocupação com a
problemática étnica ou a do racismo. Os próprios cientistas sociais, de diferentes
origens étnicas, identificam-se por sua vez com uma agenda de pesquisa onde
ressaltam os problemas sociais associados à classe, e recentemente a gênero, e onde
praticamente não tem espaço outros tipo de recorte.
Assim, a agenda das Ciências Sociais no Brasil teve, em geral, muito pouca
sensibilidade para as dimensões étnicas da vida social. As preocupações teóricas no
Brasil, como no resto das Ciências Sociais latino-americanas se orientaram, em boa
medida, pelo esquema conceitual marxista, pouco preparado para tratar o que B.
Anderson (1991) denomina “comunidades imaginárias”. O próprio marco normativo,
centrado nas dimensões de dominação e exploração, procurando desenvolver
projetos nacionais, valorizou análises centradas nas classes sociais e na unificação da
nação em torno de um projeto comum. Assim, o tema da cultura e identidade
aparece quase sempre ligado a preocupações com a “cultura popular” e um projeto
nacional.
Os estudos sobre os judeus no Brasil contemporâneo são, portanto, poucos e
esparsos. Inexistem centros de pesquisa, instituições ou publicações que possam ser
considerados como referência intelectual e geradores de debates ou linhas de reflexão.
Ainda assim pode-se comentar a bibliografia existente sobre o judaísmo no Brasil.
Em primeiro lugar, são raros os esforços autóctones de reflexão sobre a
condição judaica no Brasil. Apesar dos inúmeros quadros judeus nas diferentes áreas
das ciências do homem, é quase inexistente o desenvolvimento de uma reflexão
específica sobre os judeus e o judaísmo. Possivelmente isto indica o próprio
sucesso da integração na sociedade brasileira, que não gera no intelectual judeu
angústias específicas.
Em segundo lugar, falta uma reflexão por parte da própria comunidade sobre as
especificidades do judaísmo no Brasil. Abandonadas em boa parte pelos intelectuais
judeus, majoritariamente seculares e com pouca participação na vida da coletividade,
as lideranças comunitárias encontram-se numa situação defensiva, apoiando-se em
discursos defasados e materiais educativos “importados” de Israel e em menor
medida, dos Estados Unidos. Este discurso centrado no tema do anti-semitismo e
da memória das perseguições sofridas pelo povo judeu leva muito pouco em
consideração a experiência real do jovem judeu brasileiro.
Em terceiro lugar, os estudos de generalização do judaísmo latino-americano
realizados nos Estados Unidos e em Israel são bastante insensíveis às diferenças
culturais e à especificidade brasileira. Assim, por exemplo, a distância enorme que
existe entre a vida judaica na Argentina, onde o anti-semitismo é uma experiência
cotidiana, e a vivência dos judeus no Brasil, não é suficientemente analisada.
Uma das características específicas da formação histórica da identidade
nacional das elites brasileiras, que a diferencia dos outros países latino-americanos, é
que o Estado nacional não se constitui através de uma confrontação armada entre
suas elites e rompimento com o país colonizador. No Brasil não houve rompimento
via guerra de independência e se constituiu desde o início como escolha de
continuidade e renovação da Europa no Novo Mundo. Assim, a formação da
ideologia do Estado nacional no Brasil foi um processo lento de afirmação das
características próprias, enquanto na América hispânica a guerra contra a Espanha
obrigou desde o início a que se criasse uma ideologia de afirmação pela negação,
contra a potência colonizadora ou contra os vizinhos frente aos quais deviam ser
afirmadas fronteiras arbitrárias.
Assim, enquanto no Brasil as raízes lusitanas foram sempre reconhecidas, na
América hispânica a formação da identidade nacional deu-se pelo rompimento com a
potência colonial e a afirmação de símbolos pátrios centrados no poder do Estado.
Desta forma, enquanto a ideologia nacional no Brasil não problematiza as raízes
“estrangeiras” e aceita a continuidade histórica, no resto da América Latina, a
afirmação contra o estrangeiro passou a ser parte da própria definição da identidade
nacional.
A inexistência no Brasil, de um estado nacional com forte ideologia cíviconacionalista,
exigindo lealdade unívoca do “povo”, fez com que a assimilação do
judeu ao meio ambiente não tivesse sido vivida como uma questão de escolha entre a
identificação com a “pátria” ou com a comunidade judaica. Fora da experiência
comunista, onde a identificação com o partido exigia romper com outros vínculos de
lealdade coletiva, a assimilação dos judeus no Brasil não implicou em um esforço
ativo de autonegação. A Argentina, pelo contrário, apresentou um quadro muito
diferente. Neste país, as suas classes dominantes saudosistas e mal integradas a
contexto cultura nacional, a mobilização proto-facista das classes dominadas, o
papel do catolicismo tradicional, a integração/normatização da ideologia cívica com
forte componente “patriota”, geraram uma sociedade permeada pelo anti-semitismo
e que mobiliza em forma constante o problema da “dupla lealdade”. Na Argentina,
ainda, as forças de rejeição, da xenofobia e do anti-semitismo, geraram uma
comunidade mais ativa, reflexiva e uma integração maior entre parte da elite intelectual
judaica com a sua comunidade, apesar da crescente perda de densidade demográfica
e cultural.
Cada cultura confere um equilíbrio particular entre o peso e a significação que
tributam ao presente, ao passado e ao futuro. Em certos casos, como na Europa, na
Argentina e no Uruguai, a valorização do passado como período de um esplendor
que dificilmente voltará, faz com que o presente seja visto como um período de
decadência e o futuro como anunciador de novas incertezas. Na cultura americana, o
passado, não muito distante, oferece o sistema de valores e imagens de autoconfiança
que permite transformar o presente numa plataforma para um futuro cheio de
oportunidades e sonhos de auto-realizações. No Brasil a confiança no presente se
alicerça na negação do passado e na capacidade de se afastar dele.
Finalmente, os poucos estudos sobre judaísmo no Brasil, geralmente feitos por
historiadores, sublinham, em geral, aqueles episódios na história brasileira associados
à expressões de anti-semitismo. Um exemplo paradigmático é o livro de Jefrey Lesser
(1995), que apesar de importantes méritos, possui uma carga normativa que o leva a
enfatizar a problemática da judeufobia e anti-semitismo e que o leva a distorcer a
interpretação dos achados de sua própria pesquisa. Lesser focaliza o período das
décadas 30 e 40 no Brasil, durante a ditadura de Getúlio Vargas, inspirada em idéias
fascistas. Neste período, ocuparam o governo alguns intelectuais que se inspiraram
em ideologias anti-semitas européias para justificar políticas contra a emigração
judia. O trabalho de Lesser, que entre os vários méritos se encontra a ênfase na
necessidade de reconhecer a especificidade da integração dos judeus no Brasil, não
aplica este conselho em forma consequente.
Em primeiro lugar, Lesser não distingue suficientemente entre o discurso de
alguns componentes do governo brasileiro e a realidade sociocultural do Brasil. Aliás,
a distância entre o Estado e a sociedade no Brasil, é um tema constante das Ciências
Sociais no Brasil. Assim, embora tenha ocorrido um surto anti-semita durante o
Estado Novo, ele não chegou a ter maiores consequências no que diz respeito à
modificação dos padrões socioculturais da convivência brasileira.
A falta de anti-semitismo no Brasil não se explica, como coloca Lesser, pela
inexistência de contato real com judeus concretos. De acordo com Lesser, quando
os judeus efetivamente chegam ao Brasil e demonstram não serem “...neither very
rich nor very poor, were rarely active politically, and rapidly acculturated to Brazilian
society...” (p.3), as elites teriam perdido seus preconceitos. Não são os “fatos” que
explicam a existência, ou perda, de preconceito no Brasil, ou em qualquer outra
cultura. De todas as formas a colocação de Lesser é equivocada pois houve no
Brasil um número pequeno porém relevante de judeus que apoiaram o partido
comunista, assim como outros conseguiram rapidamente ascender economicamente.
Uma sociedade com predisposição anti-semita poderia ter mobilizado estes fatos para
consolidar atitudes contra judeus.
Em segundo lugar, Lesser não é suficientemente sensível à compreensão da
sociabilidade política brasileira, fortemente permeável a atitudes pragmáticas, ao
compromisso e ao tratamento de cada caso individual como único, no lugar de
atitudes burocráticas universalistas. Foi esta característica que permitiu o paradoxo
sobre o qual Lesser tanto insiste: que apesar do discurso imigratório do regime de
Vargas conter componentes anti-semitas, o número de imigrantes judeus ao Brasil de
1933 à 1942 foi superior ao da década anterior, ou ao dos países latino-americanos
com governos democratas e não anti-semitas.
As dicotomias da sociedade brasileira fogem à categorias de análises utilizadas
por Lesser. Nela a dupla filo/anti-semitismo não constitui o parâmetro organizador
da percepção social da alteridade no Brasil. Como indica Bauman (1995), é esta
percepção do judaísmo como algo diferente, seja bom ou ruim, que determina a
situação particular do judeu na cultura ocidental.
A ênfase de Lesser no tema do anti-semitismo e no discurso da elite intelectual
deforma, portanto, a percepção da dinâmica política e social da vida brasileira e da
integração dos judeus no Brasil. Afinal, como explicar que foi um governo semifacista
que aconselhado por um jornalista aparentemente anti-semita, Assis
Chateaubrian, entregou nas mãos de um judeu um setor industrial politicamente
estratégico, o da produção de papel (Morais, 1995).
Conclusões
O anti-semitismo tem sido uma das principais obsessões nos estudos judaicos
deste século, porém pouco tem sido feito para compreender contextos em que o
anti-semitismo é limitado ou quase inexistente. Este tipo de estudo pode contribuir
tanto, ou quiçá mais, no esforço da erradicação do preconceito racial. Inclusive, para
aqueles preocupados com a continuidade geracional do judaísmo, o esforço de
entender e reconhecer a existência de contextos não anti-semitas é uma das condições
para superar um discurso que valoriza o trauma e experiências não vividas pelas
novas gerações.
A luta contra o anti-semitismo valorizou, fundamentalmente, as estruturas
democráticas como barreira para a intolerância e como principal contraponto ao
discurso racista. A experiência brasileira, sem negar ou desmerecer a importância da
democracia, mostra que a luta contra o preconceito racial ou étnico pode se sustentar
também nas estruturas culturais e mitológicas da sociedade. Inclusive, uma das
contradições de muitos países democráticos avançados é a sustentação de uma
educação cívica que valoriza mitos nacionais alimentados por ideologias xenófobas e
racistas.
Toda identidade é incompleta sem uma imagem da alteridade. Os mitos de
origem nacional na tradição européia se constituíram na contraposição, e por vezes na
negação, do outro. Na cultura brasileira o outro é necessário para constituir-se a si
mesmo. No lugar da degeneração, o estranho traz o progresso. Esta mitologia
nacional se constituiu no preço altíssimo da desvalorização do negro. Contudo, a
partir do passado brasileiro, esta construção não era a única saída possível. A
originalidade da cultura nacional brasileira foi ter produzido uma sociabilidade que em
muitos aspectos possui dimensões idílicas, pelo menos se visto da perspectiva das
culturas individualistas e disciplinadas da Europa, onde o contato social e a
convivência são fonte de angústia, o prazer é problemático e o presente inacessível.
Esta cultura, por sua vez, dilui a alteridade, limitando a afirmação de identidades e da
reflexividade discursiva, valorizando as relações primárias com descaso pela
coletividade mais abstrata.
As culturas nacionais, no mundo moderno, não substituem a democracia como
principal baluarte contra a intolerância, a violência arbitraria do Estado e mecanismo
de resolução pacífica de conflitos. A cordialidade e a informalidade da sociedade
brasileira, num contexto de desigualdade social e falta de direitos dos cidadãos, pode
funcionar como um mecanismo de dominação, amenizando o confronto reivindicativo
e evitando o conflito social. O grande desafio do Brasil é o de transformar a
sociedade sem destruir os aspectos positivos de sua sociabilidade. A sociedade
brasileira deve lutar por superar o racismo sem pretender usar tecnologias de
regulação social, associadas a culturas que reprimem a espontaneidade, que se
sustentam na afirmação da individualidade pela confrontação e na disciplina fundada
na limitação das dimensões lúdicas da convivência.
O perigo é construir padrões sociais, via sistema jurídico e políticas públicas,
que destruam os aspectos positivos da sociabilidade brasileira e que correm o risco
de terem baixa eficácia na prática. No Brasil, parece haver um conflito entre os
valores de sua sociabilidade e os valores democráticos. A proteção dos amigos e a
insensibilidade frente ao bem público, o papel do clientelismo sobrepondo-se quase
sempre a critérios universalistas, adquirem no contexto de uma sociedade que finca
suas raízes no escravagismo e na miséria, uma dimensão de insensibilidade frente à
desigualdade social e de incentivo à impunidade.
Conflitos entre valores não-individualistas (hierárquicos, coletivos) e a
construção de uma sociedade democrática perpassam grande parte das sociedades
(do Japão a Israel). Em sociedades com fortes componentes comunitários, -
nacionalistas ou religiosos fundamentalistas -, o desafio é a tolerância frente à
diferença e a criação de um espaço público aberto ao reconhecimento do indivíduo
como fonte última de escolha moral. A sociedade brasileira deve construir ainda a
noção abstrata de cidadania e de um bem público comum, que implica numa
solidariedade abrangente.
Os mitos de origem e a cultura nacional não oferecem em garantias absolutas
para o futuro. Da mesma forma que as democracias correm risco de existência, as
culturas nacionais, embora sejam fenômenos de longa duração, são, também elas, um
produto ha história e mudam sob o impacto de novos contextos societários. Como
mostra Poliakov (1971), a Suécia nos séculos XVI e XVII sustentou um mito de
origem nacional que justificava o imperialismo e expansionismo territorial. Com as
mudanças demográficas e políticas posteriores, os suecos refizeram seus mitos
nacionais para adequá-los às novas circunstâncias. O mito de origem dominante no
Brasil também poderá vir a mudar. O impacto da globalização, da individualização na
vida urbana moderna, da pobreza, e das expectativas frustradas, poderão desgastar as
crenças dominantes e abrir espaços a serem explorados por novos movimentos
políticos e líderes carismáticos. O futuro do país do futuro é um livro aberto com
novas páginas a serem escritas. No momento atual está longe de ser decidido em que
direção os mitos e valores nacionais evoluirão.
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