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Tuesday 17 November 2009

A ESCOLA FOI REPROVADA! - professor Talema

A ESCOLA FOI REPROVADA!
professor Talema


Vivemos uma época de crise denominada nova desordem mundial: a sociedade está doente, assim como a família, a escola e o planeta.
Já existe um consenso: a mudança deve começar pela educação.
Mas o que é a Educação, qual é o seu objetivo?
Educar é um processo de crescimento e desenvolvimento positivo do potencial humano para a vida e para a felicidade: é estimular o que existe de melhor em cada um de nós, promovendo as auto-realizações pessoal, familiar, profissional, social, espiritual.
Os últimos estudos sobre o cérebro e a felicidade, apontam para a presença necessária das emoções positivas. A paz, o amor e a alegria são a bússola da felicidade.
O amor é a emoção estruturante, o norte magnético da felicidade, é o pai e a mãe das inteligências múltiplas. O que é bom para o coração, é bom para o cérebro.
A presença amorosa do professor na sala de aula é a sua maior virtude, capaz de descobrir talentos, revelar sonhos, desenvolver a criatividade, propor vivências, gerar novos aprendizados.
Segundo Maturana, uma criança que cresce no respeito por si mesma pode aprender qualquer coisa e adquirir qualquer habilidade, se o desejar. Portanto, a educação para o trabalho também deve respeitar a vocação natural do aluno.
A criança educada com emoções positivas se desenvolverá de forma saudável e terá um caráter bom e construtivo. O oposto também é verdadeiro! Quando preponderam as emoções negativas da tristeza, do medo e da raiva, a criança adoecerá e se tornará destrutiva. Infelizmente, é essa a nossa atual realidade.
Estamos em tempos de Avaliação da Aprendizagem, que significa verificar o crescimento integral do aluno. Normalmente em nossas escolas destaca- se o lado negativo, o que não contribui para elevar a sua auto-estima. A escola atual sofre do coração...
Avaliação positiva significa reforçar o lado saudável do aluno. Destacar o que o aluno tem de bom, o seu lado OK, para que sua auto-estima aumente e que seja um elemento motivador de seu crescimento pessoal em todas as áreas.
Não adianta só mudar a forma de avaliação, precisamos mudar para outro paradigma que estimule a paixão de aprender, evoluir, ser feliz!
Educar o nosso aluno sem reconhecer suas emoções positivas e estimular o seu potencial para a felicidade é bloquear o seu crescimento, inclusive intelectual.
Nossa missão é criar uma pedagogia mais amorosa, alegre e pacífica. Fecundar a liberdade, reinventar a utopia, promover a inclusão social. Uma Pedagogia para uma vida feliz.
Só assim, com criatividade, encontraremos respostas à grave situação atual.

Prof. Talema- Educação Física: Biodança e Ioga
Terapeuta de família e de casal www.talema.pro.br
talema@talema.pro.br

IMPÉRIO E BENEVOLÊNCIA: DUAS FACES DO EGOÍSMO UMA CRÍTICA DA SOCIEDADE A PARTIR DE EMMANUEL LÉVINAS

IMPÉRIO E BENEVOLÊNCIA: DUAS FACES DO EGOÍSMO
UMA CRÍTICA DA SOCIEDADE A PARTIR DE EMMANUEL LÉVINAS


José Jorge Guedes de Camargo(*)


SÍNTESE – O presente trabalho busca apresentar uma crítica à sociedade à partir do pensamento de Emmanuel Lévinas, partindo da reflexão sobre a “Império” e a “Benevolência” como expressões do egoísmo; enquanto o primeiro soa como expressão máxima da dominação sobre Outrem, que se ancora no egoísmo e imposição do Um sobre o Outro, a “Benevolência” como manifestação de um colocar-se e projetar-se exteriormente em direção a outrem, mantendo a condição de sobreposição ao Outro em uma situação de carência, de inferioridade e/ou submissão.

PALAVRAS-CHAVES: Crítica à Sociedade, Egoísmo, Império, Benevolência., Responsabilidade.


ABSTRACT – In this paper a critic to contemporary society from Emanuel Lévinas’s beliefs contemplating on the concepts of “Empire” and “Benevolence” as expression of selfishness is presented. While the first is recognized as maximum expression of dominance of the others, that is anchored in selfishness and in the imposition of One over the Others, “Benevolence” as a manifestation of putting in the situation of someone else and expressing yourself externally to others, maintain the position of being superior to another person in a situation where things are lacking and where there is inferiority and submissiveness.

KEYWORDS: Critic to the Society, Selfishness, Empire, Benevolence, Responsibility.



A sociedade contemporânea está constituída em uma humanidade marcada e sustentada na competição e na ausência de solidariedade. Uma humanidade que convive em constante estado de divisão, de subjugação, e que coloca na marginalização e no abandono grande parte de seus integrantes. Uma humanidade que “tem ânsia pela paz, mas que convive com a guerra” como acontecimento inerente e insuperável.


Neste sentido, entendendo que o egoísmo marca profundamente a sociedade contemporânea, buscamos enfocar no presente trabalho a conduta de “Império” e de “Benevolência” como “Egoísmo”.


Enquanto é manifestamente reconhecido que “Império” está ancorado no egoísmo, na imposição e no controle do Eu sobre o Outro, do Eu sobre outrem, EMMANUEL LÉVINAS, a partir da Alteridade, situa a “Ética como Filosofia Primeira”, oferecendo elementos para uma reflexão crítica da “Benevolência”. Refletindo e analisando a “Benevolência” como uma não superação do egoísmo, mas simplesmente, como manifestação de uma realização do Eu, como uma expressão de Egoísmo, encontraremos no pensamento de Lévinas uma específica “crítica da sociedade contemporânea”.


ALTERIDADE EM LÉVINAS


Para EMMANUEL LÉVINAS o egoísmo, o fechamento do Eu em si mesmo, o eu que se busca em sua própria e exclusiva subjetividade, sustenta todo o pensamento ocidental, caracterizado por uma “filosofia do poder”. O fechamento e a reflexão do Eu que se basta em si mesmo, a reflexão e reconhecimento do Mesmo como uma realidade definitiva que se basta, marca uma egologia redutora do ser ao ente: o eu-em-mim-mesmo.


O fechamento e o bastamento do ser impede o encontro com a abertura, com a exterioridade, com o infinito, com o transcendente. Bastando-se em si mesmo, a subjetividade limita-se e abandona o desejo de transcendente: o Infinito, expresso na exterioridade, escapa-lhe e imerge o ser, o ente, na apatia e na mesmicidade ontológica.


Para nosso autor esta exterioridade, o Infinito se dá no encontro do outrem. Um encontro que não tem características investigativas meramente ontológicas, técnicas e científicas, mas de informalidade e de pessoalidade.


“Outrem, como outrem, não é somente um alter ego. Ele é o que eu não sou: ele é o fraco enquanto eu sou forte ele é o pobre; ele é a ‘viúva e o órfão’.(...) A exterioridade social é original e nos faz saída das categorias de unidade e de multiplicidade que valem para as coisas” (LÉVINAS, E., Da Existência ao Existente, Papirus, Campinas, 1998, p. 113 - edição e tradução brasileira da obra “De l’exitence à l’existant”).

O Outro para Lévinas é aquele que me estende a mão e me interpela com um “me dá um prato de comida”.


Perante o Outro e seu Rosto que clama, uma exterioridade absoluta da não posso desvenciliar-me, apresenta-se como uma obsessão, uma obrigação um dever que impede a escolha, qualquer opção: perante o R do Outro, o Eu não pode, o Eu não tem poder. O Outro clama à responsabilidade e esta minha responsabilidade rompe com qualquer superioridade subjetiva. O Outro determina o acolhimento e conduz para a igualdade. Expressa o autor:


“No acolhimento do R (acolhimento que é já a minha responsabilidade a seu respeito e em que por conseqüência, ele me aborda a partir de uma dimensão de altura e me domina), instaura-se a igualdade. Ou a igualdade produz-se onde o Outro comanda o Mesmo e se lhe revela na responsabilidade: ou a igualdade não é mais do que uma idéia abstrata e uma palavra. Não se pode separar o acolhimento do R de que ela é no momento” (TI, 192) [1].


É perante o eu-em-si-mesmo que Lévinas ressalta a importância do encontro com o Outro. O Rosto de outrem clama e na Alteridade o fechamento rompe e conduz a um novo eu: de um eu-em-si-mesmo, para um eu-com-o-outro, na exterioridade, em uma relação Eu-Outro, na qual não há negação da individualidade do Mesmo, nem tão pouco do Outro; há compartilhamento de convivência, há intersubjetividade.


Para Lévinas, “a relação assimétrica com o Outro, que infinito, abre o tempo, transcende e domina a subjetividade... pode dar-se ares de simetria”(TI, 204). Entretanto, inexiste igualdade que permite uma escolha ou opção por parte do mesmo. A transcendência do Outro que se dá sobre mim, ocorre no Rosto do Outro que clama.


Esta separação e assimetria entre o Eu e o absolutamente Outro, expressa-se de forma concreta, perpassando-se até na compreensão da individuação das relações. Segundo nosso pensador:


“A separação encontra-se revestida numa ordem em que a assimetria da relação interpessoal se apaga no comércio e em que o homem particular, individuação do gênero humano, que aparece na história, se substitui ao eu e ao outro... (entretanto) “a separação não se apaga neste equívoco” (TI, 204).


Reconhecendo ser Infinito e Transcendente à subjetividade do eu-em-mim-mesmo, “o outro passa a ter primazia sobre o mesmo, isto é, sobre o Eu que se fixa na sua identidade e não reconhece nada além de si (TI XII)” (KUIANA, 303) [2] e “esta se dá de forma concreta, numa história e numa política” (TI, 204).


IMPÉRIO


O “Império” [3] como um elemento motivado e inerente à centralidade e fechamento do Eu, situa-se como a expressão máxima do egoísmo, onde o ser, motivado e conduzido exclusivamente por uma subjetividade centrada e fechada em si mesmo, impõe-se ou visa se impor sobre outrem.


Neste sentido esta imposição, para Lévinas, tem sua origem e fundamento desde já na compreensão realizada pelo próprio, pelo Mesmo na ontologia: “a ontologia como filosofia primeira é uma filosofia do poder”( TI, 33). O Eu através da ontologia quer se bastar a si mesmo e impor-se frente ao Outro, frente ao mundo e às outras pessoas. Segundo Lévinas: “A mediação fenomenológica serve-se de uma outra via em que o “IMPERIALISMO ONTOLÓGICO” é ainda mais visível. É o ser do ente que é o médium da verdade” (TI,32) que leva à “filosofia do poder, a ontologia, que não põe em questão o Mesmo, é uma filosofia da injustiça” (TI, 34).


Refletindo a partir da fenomenologia, mas utilizando-se de uma ótica filosófica singular, Lévinas critica a filosofia ocidental, mostrando ainda que a filosofia de Heidegger sustenta e conduz exatamente a uma conduta de Império, uma vez que “a ontologia heideggeriana que subordina a relação com Outrem à relação com o ser em geral mantém-se na obediência do anônimo e leva fatalmente a um outro poder, à DOMINAÇÃO IMPERIALISTA, à tirania” (TI, 34).


Expressa Lévinas:


“O ‘egoísmo’ da ontologia mantém-se mesmo quando, ao denunciar a filosofia socrática como já ouvidador do ser e como já a caminho da noção do ‘sujeito’ e do domínio técnico, Heidegger encontra, no pré-socratismo, o pensamento como obediência à verdade do ser, ... como toda a história ocidental, concebe a relação com outrem como cumprindo-se no destino dos povos sedentários, possuidores e edificadores de terra. A posse é a forma por excelência sob a qual o Outro se torna o Mesmo, tornando-se meu” (TI 33).


O Império, através da ontologia, da filosofia ocidental, expressa a busca pelo domínio e pelo poder, pela submissão do Outro aos interesses e motivações do Eu.


BENEVOLÊNCIA


Entretanto esta submissão do Outro, como uma conduta do império ontológico do Eu, também expressa-se, ainda que veladamente, quando o Mesmo busca sua própria realização, tendo o Outro como objeto de “sua” benevolência, escolhendo e apontando a outrem pelo qual quer ser o responsável.


A abertura, a superação do egoísmo do Mesmo através da alteridade, rompe as opções e a comodidade do Eu. O Rosto do faminto transcende a realização do Mesmo:


“A orientação fundamental do ser não consiste na busca da realização de si mesmo, geralmente às custas do outro, mas no fato de ser para o outro, com a usura de si mesmo... que se expande e exaure nas possibilidades do seu próprio ser, para o homem que se orienta para o outro, alçando-se a humano à medida que abraça o transcender dessa nova orientação.(...) Porém, o outro não é aquele que se escolhe; é sempre o primeiro que chega, o próximo, que não depende de minha escolha” (PIVATTO, p. 362) [4].

Longe de tratar-se de um ato de escolha e vontade, do “discurso que a epifania abre como Rosto, não posso furtar-me pelo silêncio... Perante a fome dos homens, a responsabilidade só se mede “objetivamente”. É irrecusável. O Rosto abre o discurso original, cuja primeira palavra é obrigação que nenhuma “interioridade” permite evitar” (TI, 179). Esta responsabilidade, superando a qualquer egoísmo, “não poderá consistir num movimento teorético, numa justificação devota ou altruísta, mas num movimento contre-nature na descoberta da eleição pelo como da passividade, pelo como do excesso do mal, expresso na partícula ‘para’ ”( PIVATTO, 367).


Este encontro que se dá na exterioridade do Outro, com “o Rosto, cuja epifania ética consiste em solicitar uma resposta, não se contenta com “boas intenções” e com benevolência inteiramente platônica. A “boa intenção” e a “benevolência inteiramente platônica” não são mais do que os resíduos de uma atitude que toma onde se goza as coisas, onde podemos despojar-nos delas e oferecê-las” (TI, 204).


A Benevolência não supera a redução do Outro à passividade e à realização do Mesmo, não permite a Liberdade e a superação do Egoísmo. Ressalta Lévinas:


“A relação com o ser, que atua como ontologia, consiste em neutralizar o ente para compreender ou captar. Não é portanto, uma relação com o outro como tal, mas a redução do Outro ao Mesmo. Tal é a definição da liberdade: manter-se contra o outro, apesar de toda relação como outro, assegurar a autarcia de um eu... A posse (do outro) afirma de fato o Outro, mas no seio de uma negação de sua independência. “Eu penso” redunda em “eu posso” – numa apropriação daquilo que é, numa exploração da realidade. A ontologia como filosofia primeira é uma filosofia do poder” (TI, 33).

Como uma extensão do Mesmo sobre o Outro, a Benevolência expressa-se assim como uma possibilidade e como poder do Eu frente Outrem, tido como dependente e isento de qualquer poder.


Indo além de uma doação benevolente, o Rosto clama ao acolhimento. Acolho o Rosto do Outro que me interroga e clama por uma resposta, conduzindo à Responsabilidade. Agora como responsável encontro-me reconduzido à minha realidade última: a presença em mim da idéia de Infinito, uma relação que consiste em si, na responsabilidade de servir.


Expressa Lévinas, na obra “Autrement qu’être ou au-delà de l’essence”,[5] como refutação à conduta de não comprometimento para com o Outro que clama por justiça, o seguinte:


“Este livro expôs a significação da subjetividade no cotidiano extra-ordinário de minha responsabilidade pelos outros homens – no esquecimento extra-ordinário da morte ou ‘sem respeito’ pela morte - a significação de minha responsabilidade que escapa à minha liberdade, a desfeita ou a desfecção da unidade da percepção transcendental... sujeito como espontaneidade” (AE, 179) [6].


Enquanto no egoísmo “o eu se reduziria a animal racional, faminto, egoísta e soberano em tudo que tudo lhe seria permitido.” (KUIANA, 304), pelo acolhimento o Eu, frente ao “rosto do outro perde e destitui a consciência como fonte de todo sentido, ou seja, o Eu Soberano, no seu isolamento exclusivo de ‘cogito’ e de seu reino unificante e tematizado, é posto em questão.” (KUIANA, 305).


A alteridade expressa-se assim como um despojar-se de si-próprio reconhecendo a obediência ao Outro. Para o Mim “outrem é infinitamente transcendente e estranho... pensar significa antes de tudo, escutar. Nesta perspectiva, é preciso converter a inteligibilidade em hospitalidade e serviço” (idem), diríamos, abertura, acolhimento e responsabilidade.


EXPRESSÕES DO EU: EGOÍSMO OU ALTERIDADE


Situando a ontologia como uma expressão do egoísmo, Lévinas coloca sobre crítica toda a filosofia ocidental e assim, todo o pensamento marcado pela centralização e absolutização do Eu.


Nosso pensador situa esta expressão egoísta do Mesmo já desde a antiqüidade, momento inicial do fechamento e busca do ente em si-mesmo. Segundo Lévinas:


“O primado da lição de Sócrates: nada a receber de Outrem a não ser o que se já está em mim, como se desde toda eternidade, eu já possuísse o que me vem de fora... No que concerne as coisas, a tarefa da ontologia consiste em captar o indivíduo (que é o único a existir) não na sua individualidade, mas na sua generalidade ( a única de que há ciência)... O ideal da verdade socrática assenta, portanto, na suficiência essencial do Mesmo, na sua identificação de ipseidade, no seu egoísmo. A filosofia é uma egologia” (TI, 31).


Em oposição temos a abertura, a Alteridade, o Rosto do outro que clama e rompe com a identificação do Ser ao ente, do Ser ao Mesmo. De outrem vem a responsabilidade por sua acolhida isenta de condicionantes e de opção: “exige-se uma entrega absoluta, um expor-se que impede qualquer tomada de posição” (MÜLLER, 323)[7]. Inversamente a uma conduta de prática benevolente do Eu para ou sobre o Outrem, através de uma imposição, uma oferta ou mesmo de um serviço onde consigo ou busco uma realização subjetiva (satisfação do Eu), o Rosto se apresenta como mediação, como meio para: “o outro ... não é simplesmente um fim em si mesmo assim como o eu – idéia de reciprocidade – mas absolutamente outro... o eu é na medida em é que responsável por outrem... ética não é um sistema filosófico, o ponto de chegada, mas o ponto de partida” (KUIANA, 307s).


Rompendo as expressões e limitação do Ser no em si mesmo, resultado da ontologia (egologia) o Ser não mais restringe-se ao Mesmo, mas perante a presença do Outro, do Infinito, acolhe o Outro em sua objetividade. Assim “o ser não é então objeto em nenhum grau, está de fora de toda a dominação. Esse desprendimento em relação a toda a objetividade significa positivamente, para o ser, a sua apresentação no Rosto, a sua expressão, a sua linguagem. O outro enquanto outro é Outrem...Chamamos justiça ao acolhimento de frente, no discurso (TI, 58). Justiça que permite o reconhecimento da Alteridade, que rompe a expressão do Eu como egoísmo, e que conduz a uma existência que transcende essa egologia e o fechamento no Mesmo. Justiça que se expressa, em uma nova relação entre o Mesmo e o Outro, onde o “outrem permanece infinitamente transcendente, infinitamente estranho, mas o seu Rosto, onde se dá a sua epifania e que apela para mim”(TI, 173).


Se o “Império” e a “Benevolência” expressam o egoísmo do Eu, distanciam a humanidade da verdadeira natureza, na Alteridade Lévinas situa a responsabilidade pelo Outro, a justiça em seu acolhimento do Outro como a marca de singularidade da natureza humana.


“Lévinas afirma uma tese audaciosa que separa moralidade de culpa. A promoção do homem como passagem de ser natural a ser humano passa pela responsabilidade para com o outro, nisto está sua moralidade. Porém, essa responsabilidade não é objeto de escolha pessoal, é investidura anterior à escolha, o outro investe a liberdade, conferindo-se sentido” [8] (PIVATTO, 362).

Assim, “a partir desta concepção levinasiana pode-se afirmar: ou o ser humano é moral ou não é humano” (PIVATTO, 367) [9].


A PERSPECTIVA DA CRÍTICA SOCIAL DE LÉVINAS[10]


O posicionamento de Reflexão e Crítica Social de E. Lévinas, decorre da situação de uma sociedade contemporânea que despreza, marginaliza e mantém fora da convivência social uma grande parcela da sociedade que não possui condições nem mesmo de suprir sua própria subsistência, quanto menos, condições de participar do avançado mundo tecnológico como um de seus consumidores. Orientada pelo espírito de competitividade e pelo consumismo, esta sociedade contemporânea fundamenta-se na individualidade e no egoísmo.


É perante este ambiente social que Lévinas fundamenta uma crítica social a partir da subjetividade, da individualidade do homem, atuando e questionando precisamente, o fechamento e o egoísmo em si-mesmo. Para nosso filósofo, o imperativo ético pré-originário é anterior à ontologia, a responsabilidade é situada anteriormente à própria subjetividade consciente e pensante.


Neste sentido temos uma importante contribuição de Lévinas para a Crítica da Sociedade, esta formulada a partir de uma perspectiva diversa às críticas formuladas por outros pensadores, tais como Habermas e Apel[11], Gianni Vattimo[12], Paul Ricoeur[13], Enrique Dussel[14]. Sem pretensão ou possibilidades de abordar a vasta obra destes pensadores no presente trabalho, buscamos apenas ressaltar aspectos referenciais do pensamento destes, apresentar e situar no âmago da crítica social a perspectiva de Lévinas.


Podemos assim situar a crítica e o posicionamento de Lévinas em uma perspectiva distinta e “anterior” às críticas sociais expressas e sistematizadas por outros pensadores contemporâneos. A “alteridade” em Lévinas situa a “ética como filosofia primeira” enfatiza o clamor feito à subjetividade (pessoal e individual) realizada pela concretude do Outro. Enquanto Lévinas oferece a possibilidade, ou melhor, o imperativo da alteridade como encontro da subjetividade humana, através da motivação originária ao compromisso, à responsabilidade pelo Outro, Vattimo oferece elementos que apontam para o desmonte da superioridade do pensamento técnico e do imperialismo da sociedade tecnológica atual, apontando a liberdade no resgate da subjetividade do homem frente ao domínio da razão técnica e religiosa ortodoxa. Noutra perspectiva, P. Ricoeur apresenta a importância da conduta de tolerância frente às diferenças culturais, o diálogo e a abertura como elementos de instauração de uma ordem internacional: respeito e “reconhecimento do outro como interlocutor e parceiro nas megalópoles que o mundo se tornou” (Cesar, p.71) [15]. Reconhecendo no pensamento de Lévinas referencial para crítica da situação do pensar a partir da periferia, da “exterioridade”, da alteridade frente a um mundo filosófico hegemônico, E. Dussel parte da situação concreta em que se encontram milhões de pessoas empobrecidas em nosso mundo para constituir a Filosofia da Libertação que demonstra a “imposição” de uma filosofia, de um pensamento, de uma cultura sobre outra, não apenas como uma ofensa, mas alienação e aniquilação daqueles que se situam além dos centros desenvolvidos do planeta; oferece uma filosofia a partir daquele que não é, da exclusão e da exterioridade.


Neste rico ambiente de crítica, a perspectiva de Lévinas oferece uma nova perspectiva, permitindo e contribuindo para uma crítica social a partir da meta-física do ser humano, a partir da perspectiva da subjetividade. Lévinas, recusando a ontologia (uma vez egologia), resgata o Rosto como momento anterior à razão, à própria reflexão, situando a responsabilidade, a Ética, como anterior ao conhecimento de si-próprio. O Outro que clama, ensina e conduz à Abertura, ao Infinito e destrói não apenas o fechamento ontológico, a centralidade subjetiva no Si-mesmo que se basta, mas denuncia as relações e as situações (“Rostos”) de dominação, de exclusão, de marginalidade social.


“Fica claro assim por que concluímos com a questão do terceiro e da justiça, fazendo retornar obrigatoriamente a ontologia depois da ética... a passagem da socialidade/subjectum para a sociedade/práxis ética, como passo fundamental que diferencia uma filosofia da alteridade de uma filosofia da diferença, sem cair contudo na filosofia da intersubjetividade como reciprocidade de iguais. A este título, tal filosofia , uma filosofia do amor unida a uma sabedoria” (PELIZZOLI, Marcelo L., “Lévinas: a Reconstrução da Subjetividade, EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002) .


Superando a noção de co-existência entre diferentes sujeitos, entre diferentes subjetividades, não se dá mais uma situação “alérgica” entre o Eu e Outro, perante a qual busca-se uma convivência não conflituosa e somente tolerante[16]. Há uma superação da “rivalidade” [17], onde me posiciono perante o Outro sem negá-lo e sem perder minha própria identidade.


Somos diferentes que convivemos em igualdade, sem rivalidades ou oposições: sem negar-me sou para o outro e esta “relação mantém-se sem violência – na paz com essa alteridade absoluta (TI, 176). Estranho ao Eu o Outro resiste, mas enquanto esta “ ‘resistência’ do Outro não me faz violência, não age negativamente, (mas) tem estrutura positiva, ética” (TI, 176), mesmo como concorrente não ameaça, mas no seu acolhimento o Outro, Infinito, conduz à abertura, à exterioridade, à liberdade da Transcendência.


Aponta Lévinas que uma humanidade onde se assegure tanto individualidade como a comunidade, tanto o Eu como a acolhida do Outro, constitui a própria idéia de humanidade. Assim:


“O próprio estatuto humano implica a fraternidade e a idéia do gênero humano...a fraternidade humana tem assim um duplo aspecto, implica individualidades... a singularidade consiste em cada uma se referir a si própria. Implica por outro lado, a comunidade de pai, como se a comunidade do gênero se aproximasse suficientemente. É preciso que a sociedade seja uma comunidade fraterna para estar à medida da retidão – da proximidade por excelência – na qual o Rosto se apresenta ao meu acolhimento” (TI, 192)

Inaugurando e apontado que “a sociedade não decorre da contemplação do verdadeiro” (TI, 59), mas somente é na “relação com outrem nosso mestre (que se) torna possível a verdade” (TI, 59) podemos, a partir do pensamento de Emmanuel Lévinas, apresentar uma nova crítica social. Partindo do face a face, a “obediência” e a “responsabilidade” deste encontro, apresentam um novo elemento: “a verdade liga-se assim à relação social, que é justiça” (TI,59). E é justamente no encontro, na abertura, na superação do egoísmo, na Alteridade, que se ancora a verdadeira natureza humana, e de justiça social: “A justiça consiste em reconhecer em outrem o meu mestre” (TI, 59). Um reconhecimento subjetivo e pessoal, uma relação anterior a toda e qualquer racionalidade ou estrutura social, uma relação individualizada e responsável entre Eu e o Outro através de seu acolhimento e de sua independência. Uma relação de igualdade “em face do outro como Rosto. No acolhimento do Rosto, instaura-se a igualdade” (TI, 192). Uma relação entre estranhos e entre livres, mas onde reconheço no Rosto do outro o meu mestre, o Infinito, a Transcendência.


“A passagem do Infinito deixa um vestígio que a responsabilidade significa, inaugurando o reino da Bondade, a possibilidade da paz e da fraternidade, sem que isto seja entendido como ela altruísta ou derivado de um imperativo categórico à guisa kantiana” (PIVATTO, 362/3).

É justamente como colaboradora que se apresenta a crítica social de Lévinas: atuando a partir da subjetividade atinge não apenas o homem, mas a partir desta, a pessoa no âmbito de sua relação social e cultural. Atinge a pessoa não apenas em sua dimensão histórica e econômica, mas a partir deste contato, desde o apelo da “nua realidade do Rosto”, atinge sua própria subjetividade, atinge ao si próprio e “exige” a abertura, a responsabilidade, o engajamento.


Em dimensões que se completam as críticas se somam e apontam para o combate à atual sociedade marcada por sua totalidade, por sua conduta imperial e absoluta, pela sua conduta egoísta em que se situa o homem contemporâneo. Não basta a “Benevolência” mas se faz necessária a abertura, a superação do egoísmo do si-próprio e da negação do outrem, na superação do absolutismo cultural, político, econômico e social que impera na sociedade contemporânea.

(*) Mestrando em Filosofia Social na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP).

NOTAS

[1] Esta e demais referências “ TI ”, referem-se a: LÉVINAS, Emmanuel, “Totalidade e Infinito”, Edições 70, Lisboa, 1980, tradução do original francês “Totalité et Infini”.

[2] KUIANA, Evaldo A, “Crítica de Lévinas à Estrutura da Subjetividade Kantiana” in VERITAS, v.44, Edipucrs, Porto Alegre, junho de 1999.

[3] O conceito “Império” alheio ao que ora se apresenta fora reconhecido como obediência a um poder, sobretudo do poder inerente ao Estado, o poder de coerção em face do Bem Comum. Entretanto, no presente estudo, diverso é o sentido enfocado: sim como conduta pessoal ou coletiva, de impor ou impor-se perante uma situação, perante alguém.

[4] PIVATTO, Pergentino, “Ser moral ou não ser humano”, VERITAS, idem).

[5] O sentido maior da obra Autrement qu’être ou Au-delà de l’essence é expressar que “cada indivíduo é virtualmente um eleito, chamado a sair, por sua vez – ou sem esperar a sua vez – do conceito do Eu, de sua extensão no povo, chamado a responder de responsabilidade: eu, isto é, eis-me aqui para os outros (AE, 232-233). Responsabilidade que constitui a característica fundamental de toda pessoa humana... invertendo, de alguma forma o movimento centrípeto em centrífugo” (PIVATTO, 366).

[6] LÉVINAS, Emmanuel, Autrement qu’être ou Au-delà de l’essence, Martinus Nijhoff, 1986.

[7] MÜLLER, Irichi A., “Pergunta pelo Outro – O Outro na Filosofia de Hegel, Husserl, Heidegger e Lévinas” in Veritas, idem.

[8] Este arrojado pensar de Lévinas encontra eco dentre outros pensamentos. Temos assim: “O calor da proximidade fez surgir o enternecimento e a relação do cuidado para com um do outro... A mão do ser humano se estende, se adapta ao corpo e é apta para a carícia, ao passo que aquela dos símios superiores não se estende e é antes adaptada para pegar e segurar. Foi essa base de solidariedade e partilha que serviu de ambiente para o surgimento da linguagem. Ela supõe um animal amoroso e terno. Na linguagem reside o diferencial humano. E a linguagem, singular no ser humano, é fundamentalmente um fenômeno social. Nessa relação social um não precisa justificar sua presença diante do outro porque sabe que é acolhido, nunca é simplesmente tratado como um inimigo, antes como companheiro, como semelhante, como irmão, como sócio na aventura da existência” (BOFF, Leonardo – As boas razões do socialismo a partir da moderna cosmologia in Revista América Libre, vol.18, 2001, Buenos Aires, p. 14).

[9] Neste mesmo sentido MATURANA, Humberto “Natureza Humana” in MATURANA, Humberto e REZEPKA, Sima N., Formação Humana e Capacitação, Vozes, Petrópolis, 2002, 3ª ed. pp. 59-75.

[10] Não buscamos no presente trabalho realizar uma contraposição ou crítica a outros pensadores frente ao pensamento de E. Lévinas, ou mesmo refletir ou combater críticas feitas por estes a nosso filósofo, mas sim ressaltar uma específica e nova perspectiva de crítica; ao lado do resgate da contribuição de outros pensadores, pretende-se colaborar e auxiliar a esta tarefa de crítica social, postura que reside aliás, no próprio princípio da abertura, do aprendizado com o outro, daquele que é diferente e exterior, acolhendo o que Outro me anuncia.

[11] Karl Otto APEL expressa que “a ética do discurso foi concebida como macro-ética com relação planetária. E ela de modo algum está interessada exclusivamente nos problemas intra-acadêmicos da fundamentação última como confutação do cético, mas também - de antemão – na pergunta de como seria possível superar as consequências e consequências colaterais de alcance mundial da ciência e da técnica moderna ... por meio de uma ética de responsabilidade de validade universal” ( APEL, Karl Otto, “A ética do discurso em face do desafio da filosofia da libertação latino-americana”, in SIDEKUM, Antonio (org) Ética do Discurso e Filosofia da Libertação – Modelos Complementares, Ed. UNISINOS, São Leopoldo, 1994, p.23.

[12] Gianni VATTIMO esclarece que com a sociedade tecnológica (1) o homem abandonou a todos os valores supremos e (2) o sujeito não mais detém o ser (o nihilismo respectivamente de Nietzsche e de Heidegger), estando comandado agora pela sociedade tecnológica; oferece seu resgate do sujeito através da busca do primado do sujeito, na busca da verdade originária, o apelo do ser (ver especificamente em sua obra “La fine de della modernitá”).

[13] Da hermenêutica de Paul RICOEUR podemos ressaltar a perspectiva da tolerância que consiste na tentativa de superação dos conflitos decorrente do reconhecimento da pluralidade da verdade, em uma abertura não dogmática ao outro, combinada a uma hermenêutica do diálogo do abordar a mesma realidade sob diferentes perspectivas – uma ética fundada no respeito à pessoa humana.

[14] Enrique DUSSEL parte da “exterioridade” do centro hegemônico de poder sócio, político econômico, cultural, em que se situam milhões de pessoas, reconhecendo no referencial da alteridade o elemento primeiro de análise e crítica do mundo contemporâneo.

[15] CESAR, Constança M., “Multiculturalismo: Questões Éticas” in CESAR, Constança M. (org.), A Hermenêutica Francesa – Paul Ricoeur”, ed. EDIPUCRS, 2002.

[16] No tocante à “tolerância em P. Ricoeur” elucidador trabalho pode se encontrado em “O problema da tolerância em Paul Ricoeur” (in CÉSAR, Constança, “A Hermenêutica Francesa – Paul Ricoeur”, ed. EDIPUCRS, 2002).

[17] A “rivalidade cultural” em P. Ricoeur, é elemento decorrente da própria diversidade e alteridade cultural, a qual pode ser superada através da “tolerância”.



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Pessach com Leibowitz e Lévinas.Paulo Blank

Pessach com Leibowitz e Lévinas.

Na mesma mesa, reunidos para a noite do Seder cercados pela curiosidade de sábios de todas as gerações, Yeshayau Leibowitz e Emanuel Lévinas conversavam animados estranhando nunca terem se encontrado antes. Nascidos na Lituânia no inicio do século e falecidos em meados da década de noventa, o primeiro em Jerusalém, o outro em Paris, o primeiro, um guerreiro disposto combater qualquer tentativa de sacralizar homens e terras argumentando que “só o que se encontra alem da realidade pode ser sagrado no judaísmo”, transformou-se numa figura exemplar no cenário religioso e político do estado de Israel. Lévinas com a paixão ética do seu pensamento foi reconhecido como um dos principais filósofos do século xx. Judeu praticante dirigiu uma escola judaica até o final da vida, deixou estudos do Talmud de enorme importância atual e uma obra filosófica cada vez mais estudada e difundida e um pensamento sem ilusões sobre a natureza da vida humana e a realidade das guerras. Dois guerreiros, cada um ao seu modo, ambos, na mesma mesa e eu olhando feliz por terem aceito o meu convite.
Começamos falando do Seder, ou da ágape, o banquete onde os gregos se reuniam para filosofar juntando o sabor ao saber. Foi esta a maneira que os talmudistas encolheram para formatar a noite em que cada um de Israel deveria entrar na pele de um escravo saindo do Egito. Livres, recostados em almofadas como faziam os gregos e depois os romanos, e não de pé como os nossos antepassados que, de ouvido atento, protegidos pela marca do sangue de um cordeiro sacrificado pintado no batente de suas portas, esperavam a passagem da morte. Audaciosos aqueles homens. Além de sacrificarem um animal que era sagrado no Egito, ainda usavam o seu sangue para marcar as casas assumindo de público que ali morava um membro de Israel.
Se há milênios atrás éramos escravos, hoje, sem pressa, participamos de uma conversa sobre a saída da escravidão. A Hagadá nos convida para encontrarmos no corpo a sensação de estarmos saindo do Egito, experimentando tanto a alegria quanto a angústia de um escravo em fuga, recomendando que quanto mais nos dedicarmos a falar do assunto, melhor será. Nesta proposta os sábios talmúdicos parecem obedecer ao mesmo princípio que usavam para a leitura da Torah. Quando decidiram que na escritura sagrada não haveria nem antes e nem depois, eles libertaram os pensamentos e as frases de suas molduras que assim puderam escapar da narrativa de um tempo ordenado, permitindo aos leitores “descobrirem” afinidades entre textos escritos a séculos de distância uns dos outros. Afinidades que abrem passagens entre épocas, inaugurando um agora anacrônico construído de pontes onde antes existiam tempos intransponíveis. Como se, ao lermos a Torah, sempre fosse possível reverter a narrativa a um tempo que diz respeito ao leitor em sua experiência atual, substituindo “o era uma vez” por um “aqui e agora”. Postura semelhante nos leva a conceber a noite do Seder, como uma vivência dedicada a sermos escravos em saída do Egito. Proposição extraordinária se considerarmos que foi sugerida a um Israel oprimido pelas nações em que habitavam. Uma verdadeira prescrição terapêutica. Para pessoas submetidas às nações onde habitavam nada melhor do que sentir-se saindo do Egito, escapando da vida vivida em corpos subjugados e experimentando naquela noite a mesma liberdade que um dia poderiam conhecer.
Na primeira noite do Pessach, terminada a narrativa da saída do Egito e após o conselho da Hagadá para não economizarmos em falar da libertação, ela nos leva ao encontro de Rav Eliezer. Este, com outros sábios do Talmud, se dedicavam a cumprir a orientação da fala infinita sobre a libertação, conversando e meditando durante toda a noite, sem repararem que já era hora da oração matinal. Um tanto decepcionado, Rabi Eliezer declara que, já tendo setenta anos de idade, nunca alcançou a graça de comentar (toda) a “saída do Egito nas noites” do Pessach. Ben Zoma lhe diz: “para que lembres a saída do Egito durante toda a tua vida, não só nas noites de Pessach, mas em todas as noites, e não só nelas, e sim durante todas as noites e dias da tua vida. Enquanto outros sábios ainda acrescentariam, todos os dias de tua vida até que seja trazido o Messias”
Toda a vida faz pensar na necessidade da atenção permanente com a frágil construção humana chamada por Lévinas de difícil liberdade. Aceitando a Torah, os hebreus estavam sendo convocados a olhar o mundo através de uma nova ótica. Tratava-se da invenção do outro e do primeiro esforço racional de pensar no envolvimento responsável por ele. Preocupação com o boi do outro, a casa do outro, a vida do outro, a viúva, o órfão, a terra que deve descansar ser cuidada e redividida para que ninguém fique sem o seu sustento, o cego que não deve ser enganado, o pássaro que tendo ovos em seu ninho não pode ser morto. Tratava-se da inauguração de um modo de pensar que tornaria a idéia do outro além de mim, o cerne de um modo diferente de perceber o mundo. Um mundo que não me pertence e no qual sou passageiro e sócio de todos os outros viajantes. Assunto inesgotável. Fala infinita que nos acompanhará enquanto o messias não chega para resolver as questões pendentes. Pensamento onde o filosofo Emanuel Lévinas percebeu a ética e os fundamentos da primeira filosofia. Diferente, no entanto, de outras filosofias que têm a ética como uma conseqüência possível, mas não inevitável.
Prática que transformou a espiritualidade de Israel, distanciando-a até hoje das espiritualidades que através do êxtase e da dissolução dionisíaca do eu buscam a ligação com o divino. Objetivo estranho a uma proposta que precisa da consciência para efetuar escolhas e compromissos. No êxtase há sempre uma submissão, na medida em que a consciência desaparece e a mente, dominada pelas emoções, vive a esplendorosa sensação de uma entrega imediata ao absoluto quando todas as aflições se dissolvem.
- Sheiavo, que virá! Exclamava exaltado Yeshaayau Leibowitz, toda vez que era perguntado sobre o profeta Elias, anunciador da chegada do Messias. Virá, virá, repetia o sábio incomodado com uma idéia que lhe cheirava a idolatria. Afinal, todo Messias que chega oferecendo salvação, se revela um falso Messias, prometendo um novo mundo e uma nova lei, tentando abolir as responsabilidades do pacto da Torah aprofundado pelos sábios do Talmud. Contra a Torah prometia-se a fácil liberdade da salvação individual, onde um ato de declaração de fé libera a alma de seus pecados, enquanto, para Israel, a espiritualidade se revela na responsabilidade com o outro.
Por ser esta espiritualidade um ato de escolha, nem vozes e raios sedutores e muito menos milagres e advertências puderam substituir a decisão do aderir consciente ao pacto com a Torah. Nunca alguém adotou uma forma de viver de acordo com a nova espiritualidade por causa de milagres, repetia Leibowitz um de seus muitos argumentos provocadores. Mesmo a geração que segundo a Torah teria presenciado fenômenos como o do mar se abrindo por intervenção divina, precisou de poucos dias para superar a tremenda impressão causada por um Deus revelado através de uma manifestação na história real das suas vidas. Dias depois de libertados, Israel buscou no bezerro feito de ouro, que eles mesmos coletaram entre si, a excitação produzida pelo rito pagão imediato e palpável. O conflito com o paganismo e a crença em espíritos persistiu para sempre como parte do embate interno do monoteísmo. É possível que a dificuldade de lidar com linguagens abstratas que não conheciam, fosse uma dificuldade que até hoje acompanha a mente humana.
Até aqui a nossa conversação ainda se encontra no campo do conhecido. No entanto, a releitura permanente transforma a Torah em uma revelação que se atualiza sempre. Foi assim que, com a ajuda dos talmudistas e de novos interpretes que se somaram à conversa infinita, aprendemos que a saída do Egito não transcorreu com homens ávidos de liberdade. Em seus comentários sobre a Torah, Leibowits nos coloca em contato com mestres que, lidando com as mesmas passagens que conhecemos, demonstram a possibilidade de compreênde-los de uma maneira adulta e de viver a religião e seus ensinamentos sem os chauvinismos e a exaltação dos comentadores que circulam pelo judaísmo virtual da internet.
Quando os talmudistas leram na Torah que Israel não deu ouvidos a Moisés “por causa da angústia do espírito e pela dura servidão” (me kotzer ruach vê avoda kashá), eles se espantaram perguntando se, por acaso, “existe alguém que recebendo uma boa nova não se alegre?”. Ao invés de seguirem intérpretes que viam naquela atitude o resultado de uma vida sofrida capaz de transtornar a razão, eles preferiram enfrentar o texto de modo afirmativo. Por acaso não conheciam a antiga tradição prevendo que Israel seria escravizado no Egito e mais tarde libertado? Por isto está escrito: não ouviram a Moises. Não ouviram, nem deram atenção porque ele falava algo que já sabiam. Por que? Por causa da Avoda Kasha, interpretada no texto talmúdico como Avoda Zará! É preciso retornar ao texto hebreu para apreciar a interpretação. Avoda Kasha, o trabalho pesado é assim entendido por ser Avoda Zará, trabalho estranho ou idolatria, eis aí o verdadeiro significado do trabalho pesado.
Aculturados no Egito, eles não deram ouvidos a Moises por que estavam imersos na pratica da idolatria e não por que sofriam! Continuando na leitura do texto o Talmud se apega ao uso da palavra “ordenarás” Vaietzavem, estranhando que fosse necessário dar ordens a quem recebe boas novas. E qual a ordem? A resposta se encontra no Talmud de Jerusalém no tratado de Rosh Hashaná no comentário sobre o toque do Chofar no ano da abolição das dívidas e dos escravos. Aqui, novamente encontramos a expressão Vaietzavem, referindo-se mais uma vez a ordenarás a Israel. Este trecho que trata da libertação do escravo hebreu, nos levará ao profeta Jeremias que viveu oitocentos anos após a saída do Egito. Em suas advertências ele relembra ao povo que no dia da sua redenção Deus pactuou com Israel um acordo através do qual libertariam o escravo hebreu no sétimo ano de sua escravidão, mas os hebreus romperam com o pacto que, no entanto, era condicional. Ainda, enquanto escravos, Israel recebeu a primeira mitzvá que comprometia o seu futuro de homens livres em sua terra caso não guardassem a condição imposta. Esta mitzvá indicava que a libertação foi AL Tnai, em condição e não um presente caído dos céus no colo de pessoas que precisaram receber uma ordem para saírem da escravidão em que viviam. Responsabilizar-se pela liberdade do outro, eis a condição para que o escravo possa garantir a própria liberdade e a posse da sua terra.
Ideais éticos criados por pessoas dominadas podem sofrer transformações quando elas se encontram no poder. Só nesta condição é possível saber a verdadeira afinidade entre o ideal e os seus criadores. Foi Rav Iehuda Halevi, o grande poeta medieval, quem, no século 12, recolocou esta questão em evidência na sua obra “O Kuzari”. Nela o rei Kazar ouve sábios de diferentes tradições para decidir por qual religião monoteísta deveria optar. Em determinado momento o sábio hebreu fala ao rei Kazar sobre a vida no exílio e a humildade de Israel que não mata e nem se ocupa de guerras. De maneira surpreendente, Halevi dá ao rei Kazar a seguinte fala “Esta afirmação estaria correta se vocês aceitassem o estado de miséria em que vivem de livre vontade. No entanto, se pudessem destruir os seus inimigos seguramente o fariam”. Ou seja, se estivessem livres e vivendo na própria terra, aí sim, poderiam comprovar se era autêntico o seu espírito “humilde e sofredor”.
Em outubro de 1953 Yeshaaiu Leibowits entra nesta longa conversação, através do seu mais importante posicionamento acerca da afinidade entre política e preceitos religiosos. Dias antes, em resposta a inúmeros atos terroristas realizados por fedaim vindos de um vilarejo jordaniano chamado Kivia, um destacamento do exército de Israel liderado pelo então oficial Ariel Sharon, chegou à aldeia aparentemente deserta e implodiu mais de quarenta casas como ato de retaliação e advertência. No dia seguinte, descobriram sessenta e nove corpos de crianças e velhos que não conseguiram fugir e se escondiam nas casas. Leibowitz, homem religioso e reconhecido por sua militância a favor da Torah, tendo perdido um filho na guerra de independência, não hesita em entrar no debate milenar sempre repetindo que a sua preocupação não com a ética, um conceito ateu, e sim com os preceitos da religião.
O seu célebre artigo “Leahar Kivia” (Depois de Kivia), tem inicio com uma afirmação que nos soa familiar: “Kivia e tudo que está envolvido neste fato fazem parte da enorme experiência a que estamos sendo submetidos após a independência nacional, a criação de um estado, de uma força instituída, enquanto nação, sociedade e cultura que, durante gerações, pode usufruir de uma vida espiritual e cultural no exílio, sendo governado por outros povos e sem alternativa pessoal, vivendo por gerações, do ponto de vista da moral e da consciência, em uma encubadeira artificial onde pudemos desenvolver valores e conteúdos de sabedoria que não foram expostos à prova da realidade” A condição da prova de realidade atravessa um tempo onde não existe nem antes e nem depois. O mesmo argumento do Kuzari/Halevi, a mesma preocupação dos talmudistas diante dos primeiros libertos do Egito, a mesma advertência do profeta Jeremias alcança nos dias atuais o nosso pensamento nos levando a tomar parte da conversação acerca da exigente liberdade proposta e aceita por Israel.
Durante o Shabat do Pessach nas sinagogas costuma-se ler o Cântico dos Cânticos. Nele existe uma passagem que descreve o ventre da amada e seu umbigo. “Teu umbigo é uma taça redonda, onde nunca falta o vinho misturado. Teu ventre é um monte de trigo cercado por uma sebe de rosas.” Este versículo é retomado no Talmud como sendo uma metáfora do tribunal do Sinédrio. No corpo da amada viam Israel e no seu umbigo a Jerusalém terrestre, centro do universo, de onde os sábios legislavam para o mundo, distribuindo a sua sabedoria, como o vinho que não falta jamais. Sentados em semi-circulo, eles se viam todo o tempo. Num lugar assim, ninguém consegue esconder-se, nem vender o seu voto sem ser percebido ou desligar-se de sua responsabilidade com a viúva, o órfão, os desprotegidos. No Talmud os ensinamentos do Sinédrio foram comparados ao monte de feno protegido pela cerca de rosas que aparece no cântico. Já imaginaram proteger algo com uma cerca de rosas? Estranha maneira de dizer que as leis da Torah não podem impor-se por si mesmas. Nem raios e nem trovões podem impor o que não se quer. O cercado-tentação que as protege é frágil e mesmo que tenha espinhos, é só pular a cerca e saltar por cima dos ensinamentos que protegem a convivência social. Além disso, as próprias rosas são tão sedutoras que dá vontade de arrancá-las.
Através dessa metáfora, a lei e o pacto se revelam frágeis e só a decisão e o comprometimento com os princípios da Torah podem garanti-lo. Mesmo não sendo o meu próximo o meu semelhante, pois ninguém neste mundo pode ser o meu semelhante, ele é meu vizinho com quem devo conviver e por quem sou responsável. Para praticar esta exigente mudança de posição fui eleito entre as nações. Não há milagres, somente a difícil liberdade de uma religião feita para adultos com vontade de praticá-la sem esperar recompensas alem de uma vida protegida por um cercado de rosas. Mas, nem todos querem participar da conversação celebrada na noite do Pessach quando festejamos a exigente liberdade de pertencer a um Israel aberto a todo aquele que se disponha a ultrapassar a simplicidade espiritual de uma esperança infantil.






Deferências bibliográficas.
Emanuel Lévinas
Mas Allá Del Versículo
Difficult Freedom
Quatro Leituras Talmudicas
Algunas reflexiones sobre la filosofia del hitlerismo.

Yeshaayau Leibowits
Sichot Al haguei Israel Umoadaiv
Sheva Shanim shel Sichot Al Parachat Hashavua

Paulo Blank é psicanalista e escritor, Dr. em Comunicação e Cultura, dedica-se ao estudo do pensamento judaico.

PAPEL DA EDUCAÇÃO NA HUMANIZAÇÃO - Paulo Freire

PAPEL DA EDUCAÇÃO NA HUMANIZAÇÃO

Paulo Freire

• Resumo de palestras realizadas numa conferência verificada em Maio de 1967, em Santiago, sob o patrocínio da OEA, do governo do Chile e da Universidade do Chile. Publicado in: FREIRE, Paulo.Uma educação para a liberdade. 4a ed. Textos Marginais 8, Porto: Dinalivro, 1974, p. 7-21, foi reproduzido com a autorização do Professor Moacir Gadotti, Diretor Geral do IPF - Instituto Paulo Freire.


Não se pode encarar a educação a não ser como um que fazer huma¬no. Que fazer, portanto, que ocorre no tempo e no espaço, entre os homens uns com os outros.
Disso resulta que a consideração acerca da educação como um fenô¬meno humano nos envia a uma análise, ainda que sumária, do homem.

O que é o homem, qual a sua posição no mundo - são perguntas que temos de fazer no momento mesmo em que nos preocupamos com educação. Se essa preocupação, em si, implica nas referidas indagações (preocupações também, no fundo), a resposta que a ela dermos encaminhará a educação para uma finalidade humanista ou não.

Não pode existir uma teoria pedagógica, que implica em fins e meios da ação educativa, que esteja isenta de um conceito de homem e de mundo. Não há, nesse sentido, uma educação neutra. Se, para uns, o homem é um ser da adaptação ao mundo (tomando-se o mundo não apenas em sentido natural, mas estrutural, histórico-cultural), sua ação educativa, seus métodos, seus objetivos, adequar-se-ão a essa concepção. Se, para outros, o homem é um ser de transformação do mundo, seu que fazer educativo segue um outro caminho. Se o encaramos como uma "coisa", nossa ação educativa se processa em termos mecanicistas, do que resulta uma cada vez maior domesticação do homem. Se o encaramos como pessoa, nosso que fazer será cada vez mais libertador.

Por tudo isso, nestas exposições, para que resulte clara a posição educativa que defendemos, abordamos - ainda que rapidamente - esse ponto básico: o homem como um ser no mundo com o mundo.

O próprio homem, sua "posição fundamental", como diz Marcel, é a de um ser em situação - "situado e fechado". Um ser articulado no tempo e no espaço, que sua consciência intencionada capta e transcende.


Tão somente o homem, na verdade, entre os seres incompletos, vivendo um tempo que é seu, um tempo de que fazeres, é capaz de admirar o mundo. É capaz de objetivar o mundo, de ter nesse um "não eu" constituinte do seu eu, o qual, por sua vez, o constitui como mundo de sua consciência.

A possibilidade de admirar o mundo implica em estar não apenas nele, mas com ele; consiste em estar aberto ao mundo, captá-lo e compreendê-lo; é atuar de acordo com suas finalidades a fim de transformá-lo. Não é simplesmente responder a estímulos, porém algo mais: é responder a desafios. As respostas do homem aos desafios do mundo, através das quais vai modificando esse mundo, impregnando-o com o seu "espírito", mais do que um puro fazer, são atos que contêm inseparavelmente ação e reflexão.

Porque admira o mundo e, por isso, o objetiva; porque capta e compreende a realidade e a transforma com sua ação-reflexão, o homem é um ser da praxis. Mais ainda: o homem é praxis e, porque assim o é, não pode se reduzir a um mero espectador da realidade, nem tampouco a uma mera incidência da ação condutora de outros homens que o transformarão em "coisa". Sua vocação ontológica, que ele deve tomar existência, é a do sujeito que opera e transforma o mundo. Submetido a condições concretas que o transformem em objeto, o homem estará sacrificado em sua vocação fundamental. Mas, como tudo tem seu contrário, a situação concreta na qual nascem os homens-objetos também gera os homens-sujeitos. A questão que agora enfrentamos consiste em saber, na situação concreta em que milhares de homens estejam nas condições de objetos, se aqueles que assim os transformam são realmente sujeitos. Na medida em que os que estão proibidos de ser são "seres para outro", os que assim o proíbem são falsos "seres para si". Por isso, não podem ser autênticos sujeitos. Ninguém é, se proíbe que outros sejam.
Essa é uma exigência radical do homem como um ser incompleto: não poder ser se os outros também não são. Como um ser incompleto e consciente de sua incompleticidade (o que não ocorre com os "seres em si", os quais, também incompletos, como os animais, as árvores, não se sabem incompletos), o homem é um ser da busca permanente. Não poderia haver homem sem busca, do mesmo modo como não haveria busca sem mundo. Homem e mundo: mundo e homem, "corpo consciente", estão em constante interação, implicando-se mutuamente. Tão somente assim pode-se ver ambos, pode-se com¬preender o homem e o mundo sem distorcê-los.

Pois bem; se o homem é esse ser da busca permanente, em virtude da consciência que tem de sua incompleticidade, essa busca implica em:

a) um sujeito
b) um ponto de partida
c) um objeto

O sujeito da busca é o próprio homem que realiza. Isso significa, por exemplo que não me é possível, numa perspectiva humanista, "entrar" no ser de minha esposa para realizar o movimento que lhe cabe fazer. Não posso lhe prescrever as minhas opiniões. Não posso frustrá-la em seu direito de atuar, não posso manipulá-la. Casei-me com ela, não a comprei num armarinho, como se fosse um objeto de adorno. Não posso fazer com que ela seja o que me parece que deva ser. Amo-a tal como é, em sua incompleticidade, em sua busca, em sua vocação de ser, ou então não a amo. Se a domino e se me agrada dominá-la, se ela é dominada e se lhe agrada sê-lo, então em nossas relações não existe amor, mas sim patologia de amor: sadismo em mim, masoquismo nela.

Do mesmo modo e pelas mesmas razões, não posso esmagar meus filhos, considerá-los como coisas que levo para onde me pareça melhor. Meus filhos, como eu, são devenir. São, corno eu, buscas. São inquietações de ser, tal como eu.
Não posso, igualmente, coisificar meus alunos, coisificar o povo, manipulá-los em nome de nada. Por vezes, ou quase sempre, para justificar tais atos indiscutivelmente desrespeitosos da pessoa, busca-se disfarçar seus objetivos verdadeiros com explicações messiânicas. E necessário, dizem, sal¬var essas pobres massas cegas das influências malsãs. E, com essa salvação, o que pretendem os que assim atuam é salvarem-se a si mesmos, negando ao povo o direito primordial de dizer a sua palavra.

Sublinhemos, todavia, um ponto que não se deve esquecer. Ninguém pode buscar sozinho. Toda busca no isolamento, toda busca movida por inte¬resses pessoais e de grupos, é necessariamente uma busca contra os demais. Conseqüentemente, uma falsa busca. Tão somente em comunhão a busca é autêntica. Essa comunhão, contudo, não pode ocorrer se alguns, ao buscarem, transformam-se em contrários antagônicos dos que proíbem que busquem. O diálogo entre ambos se torna impossível e as soluções que os primeiros procu¬ram para amenizar a distância em que se encontram com relação aos segundos não ultrapassam - nem jamais o poderiam - a esfera do assistencialismo. No momento em que superassem essa esfera e resolvessem buscar em comunhão, já não seriam antagônicos dos segundos e, portanto, já não proibiriam que esses buscassem. Teriam renunciado à desumanização tanto dos segundos como de si mesmos (dado que ninguém pode humanizar-se ao desumanizar) e adeririam à humanização. O ponto de partida dessa busca está no próprio homem. Mas, como não há homem sem mundo, o ponto de partida da busca se encontra no homem-mundo, isto é, no homem em suas relações com o mundo e com os ou¬tros. No homem em seu aqui e seu agora. Não se pode compreender a busca fora desse intercâmbio homem-mundo. Ninguém vai mais além, a não ser partindo daqui. A própria "intencionalidade transcendental", que implica na consciência do além-limite, só se explica na medida em que, para o homem, seu contexto, seu aqui e seu agora, não sejam círculos fechados em que se encontre. Mas, para superá-los, é necessário que esteja neles e deles seja consciente. Não poderia transcender seu aqui e seu agora se eles não constituíssem o ponto de partida dessa superação.

Nesse sentido, quanto mais conhecer, criticamente, as condições concretas, objetivas, de seu aqui e de seu agora, de sua realidade, mais poderá realizar a busca, mediante a transformação da realidade. Precisamente porque sua posição fundamental é, repetindo Marcel, a de "estar em situação", ao debruçar-se reflexivamente sobre a "situacionalidade", conhecendo-a criticamente, insere-se nela. Quanto mais inserido, e não puramente adaptado à realidade concreta, mais se tomará sujeito das modificações, mais se afirmará como um ser de opções.

Dessa forma, o objetivo básico de sua busca, que é o ser mais, a humanização, apresenta-se-lhe como um imperativo que deve ser existencializado. Existencializar é realizar a vocação a que nos referimos no começo desta exposição.

Pois bem; se falamos da humanização, do ser mais do homem - objetivo básico da sua busca permanente -, reconhecemos o seu contrário: a de¬sumanização, o ser menos. Ambas, humanização e desumanização, são pos¬sibilidades históricas do homem como um ser incompleto e consciente de sua incompleticidade. Tão somente a primeira, contudo, constitui sua verdadeira vocação. A segunda, pelo contrário, é a distorção da vocação. Se admitísse¬mos que a desumanização, como algo provável e comprovado na história, instaurasse uma nova vocação do homem, nada mais haveria a fazer, a não ser assumir uma posição cínica e desesperada. Essa dupla possibilidade - a da humanização e a da desumanização - é um dos aspectos que explicam a exis¬tência como um risco permanente. Risco que o animal não corre, por não ter consciência de sua incompleticidade, de um lado, e por não poder animalizar o mundo, não se poder desanimalizar, de outro. O animal, em qualquer situa¬ção em que se encontre, no bosque ou num zoológico, continua sendo um "ser em si". Mesmo quando sofre com a mudança de um lugar para outro, seu sofrimento não afeta a sua animalidade. Não é capaz de se perceber "desanimalizado". O homem, por sua vez, como um "ser para si", se
desu¬maniza quando é submetido a condições concretas que o transformam num "ser para outro".

Ora, uma educação só é verdadeiramente humanista se, ao invés de reforçar os mitos com os quais se pretende manter o homem desumanizado, esforça-se no sentido da desocultação da realidade. Desocultação na qual o homem existencialize sua real vocação: a de transformar a realidade. Se, ao contrário, a educação enfatiza os mitos e desemboca no caminho da adapta-ção do homem à realidade, não pode esconder seu caráter desumanizador.

Analisemos, ainda que brevemente, essas duas posições educativas; uma, que respeita o homem como pessoa; outra, que o transforma em "coisa".
Iniciemos pela apresentação e crítica da segunda concepção, em alguns dos seus pressupostos.

Daqui por diante, essa visão chamaremos de concepção "bancária" da educação, pois ela faz do processo educativo um ato permanente de depositar conteúdos. Ato no qual o depositante é o "educador" e o depositário é o "educando".

A concepção bancária - ao não superar a contradição educador-educando, mas,. pelo contrário, ao enfatizá-la, não pode servir senão à "domesticação" do homem.

Da não superação dessa contradição, decorre:

a) que o educador é sempre quem educa; o educando, o que é educado;
b) que o educador é quem disciplina; o educando, o disciplinado;
c) que o educador é quem fala; o educando, o que escuta;
d) que o educador prescreve; o educando segue a prescrição;
e) que o educador escolhe o conteúdo dos programas; o educando o recebe na forma de "depósito";
f) que o educador é sempre quem sabe; o educando, o que não sabe;
g) que o educador é o sujeito do processo; o educando seu objeto.

Segundo essa concepção, o educando é como se fosse uma "caixa" na qual o "educador" vai fazendo seus "depósitos". Uma "caixa" que se vai enchendo de "conhecimentos", como se o conhecer fosse o resultado de um ato passivo de receber doações ou imposições de outros.

Essa falsa concepção de educação, que toma o educando passivo e o adapta, repousa numa igualmente falsa concepção do homem. Uma distorcida concepção de sua consciência. Para a concepção "bancária", a consciência do homem é algo espacializado, vazio, que vai sendo preenchido com pedaços de mundo que se vão transformando em conteúdos de consciência. Essa concep¬ção mecanicista da consciência implica necessariamente em que ela esteja permanentemente recebendo pedaços da realidade que penetrem nela. Não distingue, por isso, entre entrada na consciência e tomar-se presente à consci¬ência. A consciência só é vazia, adverte-nos Sartre, na medida mesma em que não está cheia de mundo.
Rev. da FAEEBA, Salvador, n° 7, jan./junho, 1997 13
Mas, se para a concepção "bancária" a consciência é essa caixa que deve ser preenchida, é esse espaço vazio à espera do mundo, a educação é então esse ato de depositar fatos, informações semimortas, nos educandos.

A esses nada mais resta senão, pacientemente, receberem os depósi¬tos, arquivá-los, memorizá-los, para depois repeti-los. Na verdade, a concep¬ção bancária termina por arquivar o próprio homem, tanto o que faz o depósi¬to como quem o recebe, pois não há homem fora da busca inquieta. Fora da criação, da recriação. Fora do risco da aventura de criar.

A inquietação fundamental dessa falsa concepção é evitar a inquieta¬ção. E frear a impaciência. E mistificar a realidade. E evitar a desocultação do mundo. E tudo isso a fim de adaptar o homem.

A clarificação da realidade, sua compreensão crítica, a inserção do homem nela - tudo isso é uma tarefa demoníaca, absurda„que a concepção bancária não pode suportar.
Disso resulta os educandos inquietos, criadores e refratários à coisificação, sejam visto por essa concepção desumanizante como inadaptados, desajustados ou rebeldes.
A concepção bancária, por fim, nega a realidade de devenir. Nega o homem como um ser da busca constante. Nega a sua vocação ontológica de ser mais. Nega as relações homem-mundo, fora das quais não se compreende nem o homem nem o mundo. Nega a criatividade do homem, submetendo-o a esquemas rígidos de pensamento. Nega seu poder de admirar o mundo, de objetivá-lo, do qual resulta o seu ato transformador. Nega o homem como um ser da praxis. Imobiliza o dinâmico. Transforma o que está sendo no que é, e assim mata a vida. Desse modo, não pode esconder a sua ostensiva marca necrófila. A concepção humanista e libertadora da educação, ao contrário, ja¬mais dicotomiza o homem do mundo. Em lugar de negar, afirma e se baseia na realidade permanentemente mutável. Não só respeita a vocação ontológica do homem de ser mais, como se encaminha para esse objetivo. Estimula a criatividade humana.
14 Rev. da FAEEBA, Salvador, n° 7, jan./junho, 1997

Tem do saber uma visão critica; sabe que todo o saber se encontra submetido a condicionamentos histórico-sociológicos. Sabe que não há saber sem a busca inquieta, sem a aventura do risco de criar. Reconhece que o homem se faz homem na medida em que, no processo de sua hominização até sua humanização, é capaz de admirar o mundo. É capaz de, despreendendo-se dele, conservar-se nele e com ele; e, objetivando-o, trans-formá-lo. Sabe que é precisamente porque pode transformar o mundo que o homem é o ser da praxisou um ser que é praxis. Reconhece o homem como um ser histórico. Desmistifica a realidade, razão por que não teme a sua de¬socultação. Em lugar do homem-coisa adaptável, luta pelo homem-pessoa transformador do mundo. Ama a vida em seu devenir. E biófila e não necrófi¬la.

A concepção humanista, que recusa os depósitos, a mera dissertação ou narração dos fragmentos isolados da realidade, realiza-se através de uma constante problematização do homem-mundo. Seu que fazer é problematiza¬dor, jamais dissertador ou depositador.
Assim como a concepção recém-criticada, em alguns de seus ângulos, não pode operar a superação da contradição educador-educando, a concepção humanista parte da necessidade de fazê-lo. E essa necessidade lhe é imposta na medida mesma em que encara o homem como ser de opções. Um ser cujo ponto de decisão está ou deve estar nele, em suas relações com o mundo e com os outros.

Para realizar tal, superação, existência que é a essência fenomênica da educação, que é sua dialogicidade, a educação se faz então diálogo, comuni¬cação. E, se é diálogo, as relações entre seus pólos já não podem ser as de contrários antagônicos, mas de pólos que conciliam.

Se, na concepção bancária, o educador é sempre quem educa, e o educando é quem é educado, a realização da superação, na concepção huma¬nista, faz surgir:

a) não mais um educador do educando;
b) não mais um educando do educador;
c) mas um educador-educando com um educando-educador.
Isso significa:
1) que ninguém educa a ninguém;
2) que ninguém tampouco se educa sozinho;
3) que os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo

Rev. da FAEEBA, Salvador, n° 7, jan./junho, 1997 15
A concepção humanista, problematizante, da educação, afasta qualquer possibilidade de manipulação do educando. De sua adaptação. Disso resulta que, para os que realmente são capazes de amar o homem e a vida, para os biófilos, o absurdo está não na problematização da realidade que minimiza e esmaga o homem, mas no mascaramento dessa realidade que de¬sumaniza.

Enquanto a concepção bancária implica naquela distorcida compreen¬são da consciência e a entende como algo espacializado no homem, como algo vazio que deve ser preenchido, a concepção problematizante encara o homem como um corpo consciente. Em lugar de uma consciência "coisa", a concep¬ção humanista entende, com os fenomenólogos, a consciência como um abrir-se do homem para o mundo. Não é um recipiente que se enche, é um ir até ao mundo para captá-lo. O próprio da consciência é estar dirigida para algo. A essência de seu ser é a sua intencionalidade (intentio, intendere); é por isso que toda a consciência é sempre consciência de. Mesmo quando a consciência realiza o retomo a si mesma, "algo tão evidente e surpreendente como a intencionalidade"(Jaspers) continua consciência de. Nesse caso, consciência de consciência, consciência de si mesma . Na "retro-reflexão", na qual a consciência se intenciona a si mesma, o eu "é um e é duplo". Não deixa de ser um eu para ser uma coisa para a qual sua consciência se intencionasse. Con-tinua sendo um eu que se volta intencionalmente sobre si, um eu que não se cinde.
Enquanto a concepção anteriormente criticada, que trata dá consciência de um modo naturalista, estabelece uma separação absurda entre consciência e mundo, para a visão agora discutida consciência e mundo se dão simultaneamente. Intencionada para o mundo, este se faz mundo da consci¬ência.

A concepção "bancária", não podendo realmente apagar a intencio¬nalidade da consciência, consegue contudo, em grande medida, "domesticar" sua reflexibilidade. Disso resulta que a prática dessa concepção constitui um doloroso paradoxo quando é vivida por pessoas que se dizem humanistas.

A concepção problematizadora da educação, ao contrário, ao colocar o homem-mundo como problema, exige uma posição permanentemente refle¬xiva do educando. Esse não é mais a caixa passiva, que vai sendo preenchida, mas é um corpo consciente, desafiado e respondendo ao desafio. Diante de cada situação problemática com que se depara, sua consciência intencionada vai captando as particularidades da problemática total, que vão sendo percebidas como unidades em interação pelo ato reflexivo de sua consciência, que se vai tomando crítica.
16 Rev. da FAEEBA, Salvador, n° 7, jan./junho, 1997
Enquanto para a concepção "bancária" o que importa é depositar informes, sem nenhuma preocupação com o despertar da reflexão critica (ao contrário, evitando-a), para a concepção humanista o fundamental reside nesse despertar, que se deve cada vez mais explicitar.

A concepção problematizadora da educação sabe que, se o essencial do ser da consciência é a sua intencionalidade, seu abrir-se para o mundo, este - como mundo da consciência - se constitui como "visões de fundo" da consciência intencionada para ele.
No marco dessa "visão de fundo", todavia, nem todos os seus elementos se tomam presentes à consciência como "percebidos destacados em si". A concepção problematizadora, ao desafiar os educandos através de situações existenciais concretas, dirige seu olhar para elas, com o que aquilo que antes não era percebido destacado passa a sê-lo.

Dessa forma, a educação se constitui como verdadeiro que fazer humano. Educadores-educandos e educandos-educadores, mediatizados pelo mundo, exercem sobre ele uma reflexão cada vez mais crítica, inseparável de uma ação também cada vez mais crítica. Identificados nessa reflexão-ação e nessa ação-reflexão sobre o mundo mediatizador, tomam-se ambos - autenticamente - seres da práxis.

Amos Oz: El Estado de Israel es una desilusión porque es un sueño realizado

Amos Oz: El Estado de Israel es una desilusión porque es un sueño realizado

El escritor israelí Amos Oz (foto) cree que el Estado de Israel se ha convertido en la actualidad en "una desilusión" porque es un "sueño realizado", y el único modo de mantener un sueño "perfecto y bello" es "no realizarlo jamás".

Así se expresa Oz en una entrevista publicada por el diario italiano "La Stampa", y en la que afirma que "Israel nació de los sueños, no de la geografía o de la demografía".

"Unos soñaban con reconstruir los días de la Biblia, otros soñaban con crear una réplica de las ciudades hebreas de Europa del Este, algunos soñaban con crear una copia de Austria-Hungría en Oriente Medio, ciertos otros querían una Escandinavia socialdemócrata y otros más aspiraban a un país marxista", explica el premio Príncipe de Asturias de las Letras 2007.

En su opinión, estos sueños "se han ido borrando uno al otro" y, 60 años más tarde, "Israel tiene una sensación como de desilusión, precisamente porque nació de un sueño".

"El único modo de mantener un sueño perfecto y bello es no realizarlo jamás, porque en el momento en que lo realizas, empieza la desilusión", indica el literato que, sin embargo precisa que eso no quiere decir que sea un fracaso.

Más allá del sueño, Oz considera que Israel es un país "muy mediterráneo, muy parecido a Grecia, a Italia y a España" o, en otras palabras, un lugar que "pertenece más a una película de (Federico) Fellini que a una de (Ingmar) Bergman".

Respecto al conflicto palestino-israelí, el autor de "Una historia de amor y oscuridad" se muestra confiado en que "un día habrá una embajada palestina en Israel y una embajada israelí en Palestina", que se encontrarán muy próximas porque "Jerusalén Oeste será la capital de Israel y Jerusalén Este la capital del Estado Palestino".

En cuanto a la Explanada de las Mezquitas, el escritor piensa que "debería tener extraterritorialidad y estar abierta a todos los creyentes".

Sobre su padre, contra el que se rebeló en su juventud porque quería que fuera un intelectual, mientras que él quería ser campesino, Oz asegura que, aunque murió hace 40 años, ambos aún mantienen discusiones políticas.

"Tengo la costumbre de invitar a los muertos a casa de tanto en tanto, les pido que se sienten y se tomen un café y hablamos de cosas de las que no habíamos hablado nunca cuando estaban vivos. Después del café les hago irse, porque no quiero que los muertos vivan en mi casa, pero cada cierto tiempo les invito a un café o a una conversación", manifiesta

“FREUD E O SIONISMO” — UM DES-ENCONTRO HISTÓRICO - Davi L. Bogomoletz

“FREUD E O SIONISMO” — UM DES-ENCONTRO HISTÓRICO — Resenha (Jacquy Chemouni, Imago, Rio de Janeiro, 1992)
Davi L. Bogomoletz — psicanalista.
Rio de Janeiro. Agosto de 1992.

Disse Einstein sobre a Teoria da Relatividade: ‘Se eu estiver certo, os alemães dirão que sou alemão, e os franceses, que sou filho da humanidade. Mas se eu estiver errado, os franceses me chamarão de alemão, e os alemães, de judeu..,”

Na História da Psicanálise, o item “Sionismo” é quase irrelevante, se comparado com as majestosas dimensões histórica e psicanalítica do item “Judaísmo”. E pelo outro lado, para a História Contemporânea do Povo Judeu, a importância de Freud, do judeu Freud, é quase nula. Muito já se escreveu sobre a relação entre a psicanálise, seu ‘inventor’ Freud e o povo do qual ele descende. Surge agora em português este “Freud e o Sionismo”, analisando um aspecto específico dessa relação — a postura de Freud frente ao sionismo, o movimento judaico de libertação nacional, criado exatamente em Viena, onde vivia Freud, por um judeu vienense e assimilado como ele, Herzl, na última década do século dezenove, a mesma época em que Freud apertava os últimos parafusos nas fundações de sua própria criação. Em certo momento, diz o autor, os dois homens moraram na mesma rua. Mas parece que nunca se encontraram. Ironias.
Freud jamais aceitou publicamente o Sionismo. Por que? A meu ver, para esse gigante da alma humana, nos dois sentidos da expressão, o Sionismo deve ter parecido mais uma derrota que uma conquista. A meu ver, Freud queria ser reconhecido, respeitado, queria sentir-se em casa justamente naquele mesmo meio fio enlameado onde um moleque anti-semita (futuro general da Wehrmacht? Das SS?) atirou à sarjeta o chapéu novo de seu humilhado pai. Suspeito que só ali, naquele mesmo lugar onde o crime foi cometido, é que Freud aceitaria receber as desculpas da humanidade e perdoá-la, e então sentir-se aceito. E isto implicava em continuar sentado em Viena, suportando as humilhações subseqüentes, porque sair dali seria o mesmo que perder a possibilidade da desforra. Freudianamente falando, poderia haver nisto um deslocamento para os anti-semitas do seu próprio ódio ao pai (vide “Um Transtorno da Memória no Coliseu de Atenas”) mas o que importa é que eu quase VEJO Freud em pé, numa esquina de Viena, olhando em volta e murmurando entredentes: “Daqui só saio vingado - ou morto!”).
Ao longo do livro vai ficando claro que Freud foi “fechando” com o Sionismo político à medida que o Nazismo foi fechando o destino dos judeus. Muito antes de 1938 (quando Freud cedeu e exilou-se na Inglaterra) já era bastante óbvio que o Nazismo não era um pesadelo do qual seria possível acordar. Mas essa barbárie, esse delírio ululante das multidões assassinas eram justamente o inimigo pessoal de Freud! Dos moleques da infância de seu pai a Hitler instalado no Reichstag não só nada mudou, como pelo contrário — confirmaram-se todas as suas hipóteses. Os monstros habitantes do inconsciente haviam adquirido corpo! O Mal Estar na Cultura, Totem e Tabu (a horda primitiva e o assassinato do pai), O Futuro de uma Ilusão, Para Além do Princípio do Prazer (a idéia do instinto de morte, que funcionaria como uma hipótese explicativa para tanta ferocidade), Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (a perda da identidade — e da capacidade de julgamento no interior do corpo grupal), todos estes trabalhos (a parte social da obra de Freud) estavam confirmados pelo Nazismo. Lá estava a selvageria latente do “homo sapiens”, que Freud não se cansava de desancar. “O verniz de civilização a mim não engana”, dizia ele.
Ceder a “eles”, fugindo para uma terra própria? Ora, isto equivaleria a dar o braço a torcer! Não, um homem como Freud não faria isso. Sua última “obra” escrita em solo austríaco — o “recibo’ exigido pela Gestapo, comprovando que ele não foi molestado de modo algum, e que ele arremata num ápice de sarcasmo: “recomendo vivamente a Gestapo para quem dela possa necessitar...” — deixa claro que, além da guerra entre anti-semitas e judeus, havia uma outra, entre Freud e os anti-semitas, símbolo máximo do primitivo, do patológico que há no bicho—homem (pelo que este tem de racista, não pelo que tem apenas de anti-judaico). E Freud ganhou a sua guerra. Os nazistas se curvaram a ele: Houve outros tirados com vida do inferno nazista (Bettelheim, por exemplo), mas Freud foi o único — que eu saiba — a sair cuspindo sobre as baionetas que o expulsavam.
Ao longo da leitura, o livro de Chemouni revela-se fascinante por direito próprio. Não é, definitivamente, o esmiuçamento obsessivo de um pontinho à margem, mostrando-se na verdade uma pesquisa extremamente criativa que, a partir desse ponto à primeira vista pouco relevante, pinta uma ampla paisagem sócio—político—histórico—psicológica não só da relação Freud—Sionismo, mas de um capítulo muito pouco conhecido na vida do judeu Sigmund e do movimento intelectual por ele criado. Por exemplo, quando aborda um aspecto da juventude de Freud pouquíssimo divulgado até então — a época em que este, estudante universitário, faz parte de um clube cultural nacionalista austríaco — na verdade alemão. Entusiasmado com o valor universal da cultura alemã, capaz de produzir um Goethe, e abominando, como o fizeram tantos judeus inteligentes da época, a estúpida e injustificável rejeição dos judeus pelos descendentes desse e de outros gigantes do humano, Freud também bateu-se por ser aceito. No entanto, foram todos eles rejeitados, e muito antes de surgir a “Solução Final” já estava claro (e para Freud isto ocorreu em 1878, ano em que é dissolvida a associação estudantil de que fazia parte) que a rejeição era “final”, imune a qualquer argumento. Diz Chemouni: “A obra de Freud permite compreender que o anti-semitismo não é um simples efeito de mutações políticas ou econômicas, como muitas vezes se crê, mas resulta de tensões e de conflitos psíquicos, reais e fantasmáticos, que traduzem tão tragicamente as relações entre judeidade e germanidade.” (Pág. 39). Ou seja: Freud enfrentava, acima de tudo, uma doença, a “sua” doença, a doença da alma que ele foi o primeiro a compreender, descrever, e por fim combater com alguma eficácia.
O Sionismo era simpático a Freud, sem dúvida, mas não para ele próprio. O homem que lutou quase sozinho contra os monstros do lado escuro da mente lutou também quase sozinho contra a besta anti-semita. Via-se hostilizado por um fogo cruzado — de um lado o alvejavam por seu judaísmo, e de outro por sua psicanálise, e ele sabia que havia algo em comum a essas duas “rejeições”. Não fosse ele judeu, os europeus o rejeitariam por causa da psicanálise. Não fosse a psicanálise, ele seria recusado enquanto judeu. Conclui-se que ele tinha uma briga contra a estupidez humana em geral, essa contra a qual mesmo os deuses lutam em vão. As duas frentes de sua luta complementavam-se, pois.
Ele próprio conta que, ainda jovem, elegeu como seu grande herói o cartaginês Aníbal, o semita que enfrentou e quase derrotou o Império Romano (europeu). Esse Freud—Aníbal não queria uma província distante que fosse sua. Queria que Roma — a Europa — desistisse de rejeitá-lo, o admitisse como um igual, reconhecesse o valor de sua obra. Porque não foi enquanto judeu que Freud criou a psicanálise, e sim enquanto médico, e portanto como um representante do gênero humano, já que a medicina não tem pátria nem nacionalidade, e a psicanálise não tinha como objeto a miséria psíquica dos judeus, mas de toda a humanidade. E teria que ser nestas condições — universais — que Freud exigia ser reconhecido, assim creio. Por isso não se engajou no movimento sionista, participou dele apenas como “torcedor individual”, nunca “organizado”, mas o apoiou e estimulou o mais que pôde, pelo que conta Chemouni. E mais não pôde, porque numa Europa epidemicamente anti-semita dava-lhe horror a idéia de ver a psicanálise jogada ao lixo por ser obra de um judeu, como a genética foi jogada ao lixo pelos soviéticos, que tentaram criar uma genética “proletária”. O fato é que os dois movimentos, a psicanálise e o sionismo, quisessem ou não, fincaram raízes e, como se diz, “vingaram”. Contestadores houve para ambos — e esta é uma constatação, não necessariamente uma correlação. O fato é que ignorar os vínculos de Freud com o Judaísmo enquanto cultura, e com o sionismo, fruto tardio dessa cultura, (como fez Jones, por exemplo), equivale a fazer, conscientemente ou não, o jogo de seus velhos inimigos anti-semitas.
Historiador e psicanalista ele próprio, Chemouni relata brilhantemente a história do des—encontro entre Freud e seu vizinho Herzl. Uma pesquisa densa, surpreendente e oportuna para judeus, para psicanalistas e para todos aqueles que desejam ser eles mesmos. Pois os rugidos do nazismo fazem-se ouvir novamente pelo mundo afora. Com o seu crescimento, estarão todos ameaçados — os judeus por serem judeus, e a psicanálise por espiar criticamente para dentro da alma humana, buscando dissolver, ali, as formações narcísicas onipotentes, negadoras da diferença e do outro, e também do próprio eu, que afinal não existe sem o outro. Esses fenômenos emocionais, como se sabe, são as matérias primas para a confecção do uniforme nazista. No nível apenas individual, incomodam os que estão por perto, e são sempre bem vindos ao divã do analista. Mas quando se tornam multidão e legitimam-se mutuamente, ganhando força política, de negadores do outro transformam-se em seus assassinos. E então é a própria humanidade que se torna sua vítima. Na época, os judeus eram apenas o primeiro “obstáculo” rumo à homogeneização do mundo. Agora é o lúmpen—proletariado imigrante terceiro—mundista, refugiado da miséria. Mas isso nada muda – basta constatar que os “inimigos” da matilha pseudo nazista de São Paulo, por exemplo, são os homossexuais, os nordestinos, os negros – e os judeus, naturalmente.
Como penúltima mensagem em vida, quase um “último desejo”, Freud publica o “Moisés e o Monoteísmo”. Ao dizer que Moisés não era hebreu, e sim egípcio, Freud deixa a meu ver implícita a seguinte mensagem: “Parem com isso, judeus. Vocês não são exclusivos, nem são filhos únicos de um Deus especial. Vocês e sua cultura são patrimônio da humanidade, já que o nascimento mesmo dessa cultura deveu-se a alguém que nem era um de vocês. Esqueçam essa história de “eleitos”. No máximo vocês foram os guardiões. Mas o tesouro que vocês guardam pertence a todos, à espécie humana, e isso muda tudo. Se vocês esvaziarem o narcisismo inflado por tantas coisas (boas e más), o anti-semitismo também perderá o seu gás. E então poderemos viver onde quisermos, e não precisaremos mais de um país.”
A mensagem me parece legítima, exceto sua conclusão.
Ocorre que esta é, de fato, a conclusão a meu ver infeliz de Chemouni: “A Terra Prometida moderna — ou do judeu moderno, como Freud — ignora a geografia. Ela só reconhece como território a espiritualidade, único domínio a ser conquistado. Uma vez estabelecida essa Terra, judeus e gentios nada poderão fazer a não ser converter-se a ela. Este é o significado do empreendimento freudiano.” (pág. 203). Assim fala Chemouni, ressuscitando o sonho de Ahad Haam, o ideólogo do belo sionismo “ideal”, mais na idéia que no chão.
Teria Chemouni esquecido que, para apartar a briga entre o lobo e a ovelha, seria mais inteligente convencer primeiro o lobo da ilegitimidade da briga, para depois convencer a ovelha? Não, ele não esqueceu. Mas ele o “lembra’ pelo lado do avesso, no parágrafo seguinte: “Roma, também, compartilha esse imaginário. Desde sua criação não tenta ela conquistar espiritualmente o mundo? É a opinião de Franz Rosenzweig, quando afirma que sua (de Roma) Terra Prometida é o mundo inteiro, e sua arma conquistadora, a conversão.” Chemouni diz aqui “Roma, a cristã”, mas por incrível que pareça, perde de vista a ressonância histórica do termo “Roma, o Império esmagador” — que em primeiro lugar esmagou a nacionalidade judaica. Chemouni dá a impressão de, mais uma vez, incidir na estupidez histórica de convencer a ovelha a deixar de se defender do lobo. Triste fim para um brilhante livro.
Enquanto psicanalista, eu posso entender Freud, sua luta pessoal e sua intenção – na sua época. Mas não posso entender Chemouni. Enquanto judeu de carne e osso, que ele também é, não tenho dúvidas: um povo inteiro sem Freud ainda vale mais que um Freud em troca de um povo inteiro. E o sionismo — Israel — é a única garantia de que esse povo continue inteiro, enquanto o Messias não vem – ou não volta... Qualquer pessoa diria o mesmo sobre seu próprio povo. É só sobre o povo alheio que as pessoas se dão ao luxo de serem liberais. Salvo alguns idealistas judeus incorrigíveis, disfarçados de intelectuais ferozmente objetivos, como parece ser o autor, que ainda conseguem ser “liberais” mesmo às custas de sua própria carne. Lamento. Assim como a identidade pessoal descende do narcisismo, a identidade nacional deriva do narcisismo nacional, o Nacionalismo. Não se deve, porém, matar o doente para acabar com a doença. Não é esta a mensagem da psicanálise, e muito antes pelo contrário. A solução pessoal de Freud morreu com ele, em 1939, e eu sempre me perguntei o que teria ele dito caso tivesse vivido mais uns cinco anos.
O fato é que a beleza do internacionalismo até hoje só convenceu a algumas maiorias dominadoras — nunca a uma minoria dominada. Conclusão inevitável: é o lobo que deve desistir de devorar, não cabe à ovelha desistir de se defender.
E se me perguntarem: E isto vale também para os palestinos? Eu respondo: Vale sim — enquanto uma ovelha em si mesma. Mas não enquanto a ponta da pata do lobo pan-islâmico.

FREUD E A JUDEIDADE - Davy Bogomoletz

FREUD E A JUDEIDADE - Davy Bogomoletz

“Se eu estiver certo, os alemães dirão que sou alemão,
e os franceses dirão que sou filho da humanidade.
Mas se eu estiver errado,
os franceses me chamarão de alemão,
e os alemães me chamarão de judeu.”

Albert Einstein, sobre a teoria da relatividade


Fragmento de poema exposto na Estação Armênia do Metrô de São Paulo:

“Filhos da diáspora,
Filhos da destruição,
Filhos do massacre,
Dispersos pelo mundo,
Crescendo em terra estranha,
Perseguidos por dois milhões de fantasmas,
Teus filhos, quando adormecem,
Mãe Armênia,
Te sonham em línguas estrangeiras.”

Diana Der Hovanessian, 1995







O PARADIGMA E O PARADOXO: UMA DOCE DIATRIBE
Um passeio por dois mil anos, dois exílios, duas disciplinas
e dois paradigmas.

A vida humana é marcada pela pólis, o convívio, a contigüidade, de um lado, e pelo pólemos, a querela, a discordância, etc., de outro. A vida é uma briga. E em geral, uma briga na pólis, a cidade, o ajuntamento. Ou seja, a nossa vida consiste nesse jogo eterno de ajuntamento e rejeição, de aproximação e afastamento, de amor e ódio. Vivemos todos na pólis, mas não vivemos sem o pólemos. Schopenhauer, com sua história sobre os porcos es-pinho nas noites de inverno, tinha toda a razão.
Um dos grandes problemas da humanidade foi sempre o de conviver com esse eterno conflito. E sempre houve quem tentasse encontrar saídas para essa situação intranqüila, desconfortável. O Partido Nacional Socialista alemão quase chegou lá. Faltou pouco. As religiões foram, certamente, um dos instrumentos mais antigos para tanto. Depois veio a filosofia, e hoje so-mos nós, os psicanalistas, que brigamos com essas eternas brigas.
Na mitologia grega a briga é um a priori. Os elogios de Hesíodo aos homens das primeiras estirpes incluíam sempre a bravura, a excelência nas artes da guerra. Portanto a guerra estava lá, desde os primórdios dos pri-mórdios.
Na mitologia monoteísta hebraica a primeira briga ocorre entre os humanos e seu criador, Deus. Mas há algo antes da briga, que é o paraíso. O homem é expulso do paraíso porque não confina a sua vontade aos limites que lhe foram dados. Por algum tempo, porém, viveu no paraíso, onde não havia briga.
Se fizermos um confronto entre essas duas antropogonias, a grega e a hebraica, surgirá um paralelo com as duas grandes correntes psicanalíticas – a clássica, representada por Freud, Melanie Klein e Lacan, e a pós-clássica, (outros nomes seriam de algum modo ofensivos à teoria clássica, e não pretendo comprar agora uma briga) – representada por Winnicott, Bowlby e possivelmente Kohut. (O paradigma de Kohut, suspeito, não é o freudiano).
Uma das diferenças básicas entre as duas antropogonias e as duas vertentes da psicanálise é essa etapa inicial, paradisíaca, que existe numa e não na outra. Uma concepção das origens do humano que coloca o conflito já no primeiro momento de sua existência implica numa visão de mundo – portanto, num paradigma – em que o homem é um inteiro no momento em que passa a existir. Já a visão de mundo que fala de um momento inicial em que não há conflito indica que algo acontece antes de o indivíduo tornar-se inteiro e entrar em conflito – interior ou externo.
Recentemente traduzi para o português um artigo de Zeljko Loparic em que ele analisa, a partir das proposições de Kuhn, os paradigmas adotados por Freud (e portanto por Melanie Klein e Lacan) e por Winnicott – e talvez por Kohut. Segundo Loparic, uma das diferenças básicas e mais importantes entre as teorias de Freud e Winnicott é: Para Freud a vida emocional começa, do ponto de vista psicanalítico, no momento em que o indivíduo é um inteiro e se relaciona com outras duas pessoas – ambas inteiras. Para Winnicott a relação inicial é entre um – que nem sequer é um – o bebê, e um outro, a mãe, que ainda não é inteira (do ponto de vista do bebê).
Para Winnicott a questão do pai – que Freud e Lacan privilegiam acima de tudo – é secundária à questão representada pela mãe. (O modo como Klein refere-se à mãe não nos interessa aqui, pois é uma visão que praticamente a exclui como agente no processo de desenvolvimento do bebê.) E nessa área, em que a relação com a mãe é fundamental e fundante, ainda não há conflito. Ou não deveria haver.
O paraíso existe, talvez no sentimento oceânico de Ferenczi, e certa-mente no estado inicial de não integração de Winnicott. O paraíso é sentir-se só na presença do outro, como diz ele, é poder estar ao lado de alguém e simplesmente ser, sem fazer absolutamente nada – nem pensar, no caso de um adulto. O paraíso consiste em depender sem receio, para depois rebelar-se e ir para o exílio ou, na linguagem bíblica, ser expulso do paraíso.
A frase inicial que serve de epígrafe para o livro de Betty Fuks, a frase de Jabès segundo a qual “O exílio foi, talvez, a primeira questão, pois o exílio foi primeira palavra – e antes—do—exílio é o antes—da—palavra”, está correta se ‘exílio’ significa ‘não simbiose’, mas leva a um grande equívoco se seu sentido for: ‘antes do exílio (e da palavra) não havia nada’. Pois o que há antes do exílio é aquilo que permite a todo o resto existir. E isto por mais que linguagem, como diz a autora, seja “tudo aquilo que contém expressividade, sem necessariamente estar contido no discurso”, como lembra Chaim em sua resenha ao livro (ver adiante).
No mito grego é como se o homem fosse um mero desenvolvimento a partir do animal: Um animal magnífico, mas vindo da terra assim como todos os outros. A mãe terra os produz. No mito hebraico há uma mudança qualitativa, uma descontinuidade entre a existência animal e a existência propriamente humana – há um “paraíso”. E há também um sopro – que não gratuitamente é dito, tanto em hebraico quanto em grego – e só aqui as duas culturas concordam, até onde me é dado saber – pela mesma palavra que diz ‘espírito’ e ‘alma’ – rúach, em hebraico, e pnêuma, em grego.
No mito hebraico, o homem que vem do pó da terra (do reino da natureza) recebe dois acréscimos: esse hiato entre o não ser e o começar a ser plenamente, o tempo depois do útero e antes do mundo, e o sopro, o pnêu-ma, o rúach. Neste sentido, o teórico da psicanálise que melhor compreendeu o espírito do judaísmo não foi o judeu Freud, mas o cristão Winnicott. E por falar nisso: Teria o cristianismo de Winnicott algo a ver com as suas teorias psicanalíticas, como o judaísmo teve a ver com as de Freud? Por que nunca ninguém pensou nisso? Ou será que alguém já pensou – e eu não estou sabendo? É possível.
Mas há dois lados nesse judaísmo, e poucos são, judeus ou não, os que levam isso em conta. Há o lado de Adonai, o Deus que ampara e perdoa, e há o lado de Elohím, o Deus que julga, que define e limita. Não são dois deuses, mas um só – e essa é a grande contribuição do monoteísmo judaico à espécie humana (a meu ver, claro). Um Deus ao mesmo tempo pai e mãe, ao mesmo tempo perdão e exigência, ao mesmo tempo limite e tolerância. Um Deus paradoxal, diria Winnicott – e quem não entende de paradoxos terá que escolher entre um lado e outro. Pois a grande contribuição do judaísmo à espécie humana é esse paradoxo – e foi Winnicott que o transformou em teoria psicanalítica. A mãe ama e odeia o bebê, porque se apenas o amar, fará dele – como diz a psicanálise clássica – o pênis que ela não tem. A mãe que apenas ama é a mãe carente, não centrada, que busca em outrem a completude que não lhe é possível perder. Essa mãe ‘narcísica’ faz do filho um espelho, que lhe completa a imagem de si mesma. A mãe incapaz de odiar nega a própria agressividade, e jamais admitirá que o filho se separe e tenha vida própria. Pior: seu amor é falso. (A mãe judia da piada é exatamente assim. Por falar nisso, e a dona Amália, a mãe de Freud? Pelo que dizem, podemos suspeitar de uma mulher “fálica”, que não teria conseguido admitir a incompletude.)
Essa “mãe judia” – judia ou não – é a mãe que precisa da intervenção do pai para romper a simbiose. Mas essa é uma mãe doente, emocionalmente subdesenvolvida. Se pensarmos uma mãe não muito doente, veremos que ela também odeia o filho – o suficiente para volta e meia querê-lo longe, porque ela tem uma vida própria, e por isso não estranha (e até suspira de alívio) quando ele deseja o mesmo. E esta mãe não precisa que o pai rompa a simbiose – ela própria a desfaz. O filho é dela, porque senão ela não se daria ao trabalhão que ele dá, mas não é dela, porque ela já tem a si própria (e talvez também ao marido), não é ele que a completa. O filho é dele mesmo, e isso só é possível se ela é dela mesma. “Se eu sou eu porque eu sou eu, e tu és tu porque tu és tu, então eu sou eu e tu és tu. Mas se eu sou eu porque tu és tu, e tu és tu porque eu sou eu, então nem eu sou eu nem tu és tu”. Assim disse um dos grandes mestres hassídicos, o Rabi Menahem Mendel da cidade de Kotzk, mais de cem anos antes de Winnicott. E por que ele o disse? Porque acreditava que o exercício do judaísmo não pode ser uma imitação. A relação com Deus ou é verdadeira ou é nada. Ou existe autenticidade, ou nada vale nada. Ele chegou a isso graças a um movimento religioso que provocou, no judaísmo tradicional, ou clássico, uma revolução semelhante à que Winnicott trouxe para a psicanálise. Uma revolução que, metaforicamente falando, destronou o pênis do pai e colocou no trono, em seu lugar, o colo da mãe (eu disse propositalmente colo, não seio). O hassidismo resgatou, para o judaísmo, a dimensão da compaixão divina que andava um tanto esquecida pelos judeus da época. Seu fundador, o Rabi Israel ben Eliézer, também chamado Baal Shem Tov, deve ter percebido, como percebemos nós, psicanalistas, nos pacientes que nos procuram, que os judeus de então precisavam de um tempo extra num lugar parecido com o paraíso materno, no colo, na acolhida às suas necessidades primárias, de não conflito, não exigência, não cobrança, e inventou esse movimento espantoso chamado Hassidismo.
O Rabi Menahem Mendel era, ele próprio, terrivelmente exigente, e exigia espontaneidade e autenticidade, e por isso caiu em depressão e passou os seus últimos vinte anos sem falar com ninguém. Paradoxos.
Mas para entender do que se trata aqui temos de voltar aos tempos de dois rabinos bem anteriores. No primeiro século da era cristã viveram os rabinos Hilel e Shamai, representantes dos dois paradigmas de que estou falando. Hilel era suave, bem humorado, acolhedor. Shamai era sério, exigen-te, impaciente. Hilel queria que o homem fosse bom, Shamai exigia que ele o fosse. E assim diz Jayme Barylko, no artigo “Hilel e Shamai, una polêmica existencial”: “Shamai estabelece a idéia. É função dos homens educar-se, aproximando-se à idéia. Se ocorre o fracasso, são os homens que fracassam, não a idéia. A pedagogia de Hilel centra-se no homem: as idéias devem ser reduzidas à dimensão humana, caso contrário são idéias sem vigência, ou, em última instância, anti-idéias. (...) Shamai é um humanista extremado. Ama os homens tanto ou mais que Hilel, por isso insiste em exigir-lhes o melhor, não lhes faz concessões. Hilel é tanto ou mais humanista que Shamai, por isso insiste em começar de baixo.” Para Shamai, Deus é grande, por isso é preciso exigir o máximo dos homens no esforço de servi-lo condignamente. Para Hilel, o homem é pequeno, por isso não se pode exigir dele um esforço grande demais. E Deus, diz Hilel, porque é grande, compreenderá se o homem não fizer tudo que deveria ter feito. O Deus de Shamai é um Deus freudiano, que se fosse psicanalista agiria como o bom cirurgião: para o bem do paciente, é preciso não ter piedade alguma de suas queixas e dores temporárias (as ‘demandas’ lacanianas). Já o Deus de Hilel é um Deus winnicottiano: um Deus que se fosse psicanalista agiria como a mãe suficientemente boa, e ensinaria o paciente a brincar, se ele não o sabe, para depois acompanhar e estimular o seu crescimento.
Por isso diz Shamai: “Faz muito e fala pouco”, uma proposição perfeitamente racionalista, que primeiro concebe o bem e depois o busca na vida prática. E Hilel diz: “Não julgue o teu próximo antes de teres estado em seu lugar”, uma percepção nítida de que não é possível exigir que o outro cresça, pode-se apenas tentar compreendê-lo, ajudando-o assim a crescer. Shamai exige e cobra. Hilel exorta e perdoa. Os dois amavam-se como irmãos, cada qual achando que o outro era o maior em sua geração.
O cristianismo – poucas décadas depois – dividiu o paradoxo judaico em dois e acusou o judaísmo de ser apenas um dos lados, o lado de Shamai, reservando para si próprio o monopólio sobre o lado de Hilel. Mas o juda-ísmo não era o lado de Shamai. Roma era esse lado. O cristianismo inicialmente pendeu para o lado da pura compaixão. Depois, em Roma, agora cristã, deu-se não a restauração do paradoxo, mas a criação de uma contradição terrível: O discurso acolhedor acompanhado da prática impiedosa. (É muito mais fácil ouvir cristãos do que judeus falarem do ‘medo do inferno’).
Roma não conhecia o paradoxo. O cristianismo esqueceu-o. O juda-ísmo o manteve, salvo em tempos sombrios, como diria Hannah Arendt. Tempos como aqueles em que o Baal Shem Tov teve que re-inventar o judaísmo, criando o Hassidismo, a princípio apenas compassivo (algo parecido com a regressão à dependência, que Winnicott tão bem estuda e trabalha).
Tudo isto a respeito da parte teórica do trabalho de Fuks. A meu ver, o seu trabalho é magnífico. E gostei muito do que a autora diz ao final: É uma pena que a psicanálise se aferre aos modelos já consagrados e se feche para o novo, ou seja, que os psicanalistas se entrincheirem em seus oásis, (nos caravansarai da IPA, diria eu) em vez de aceitarem o exílio do não saber.
Mas e a própria autora? Não terá ela também ficado presa no oásis do paradigma freudiano, em vez de abandonar o conforto do acampamento e errar no deserto, com as teorias tão paradoxais e tão menos poderosas, mas tão mais próximas da realidade humana, desse novo paradigma não clássico?
Eu poderia aplicar a Fuks, enquanto teórica, (já vi vários teóricos serem muito diferentes na clínica...), o título de “discípula de Shamai”: a idéia de que ao homem cabe viver no exílio, em vez de apenas sentir-se exilado enquanto vive entre os seus, é uma exigência muito bela, mas muito pesada para o homem comum. Mesmo para um judeu. Pois não é isso que transparece de suas palavras? Parafraseando uma de suas conclusões, ao final do livro, é como se ela dissesse: “Para que os judeus precisam de uma nação, de um estado, de um país? Viviam tão bem no exílio, eram um exemplo tão instrutivo para o resto da raça humana... Que pena – resolveram ter um país próprio, e com isso estragaram tudo...” (Daí as duas epígrafes no início deste trabalho, como exemplos de que a questão da nacionalidade não pode ser relegada à categoria inferior de “sintoma” ou “atuação”).
E neste ponto recordo-me de uma piada muito piedosa, segundo a qual, em pleno Yom Kipur, o judeu, no auge de sua aflição, apela ao Criador: “Mestre do Universo, somos o teu povo eleito há cinco mil anos. O Senhor não acha que já chega?...”
Se Fuks fosse discípula de Hilel, talvez não fizesse um livro tão bonito, tão denso, tão sagaz como este, mas certamente exigiria menos da humanidade, enquanto psicanalista, e dos judeus, enquanto teórica.
A autora, o ilustre Chaim Katz, na bela resenha que fez para o seu li-vro, e esse francês terrível chamado Jacquy Chemouni, autor de “Freud e o Sionismo”, belíssimo mas concluído de um modo lamentável, três talmudistas de primeira qualidade, capazes de empilhar pilhas e pilhas de gotas de orvalho umas sobre as outras, cada uma com o seu nozinho, e sem deixar que se misturem, propõem aos judeus seguirem ad eternum a sua bela, tão bela vocação do exílio. Ora, Betty, que tal sugerir ao Mandela que volte para a cadeia e leve adiante os seus vinte e sete anos de tão magnífica e edificante prisão? Que tal sugerir ao Ghandi que, em vez de alcançar a independência da India, seguisse em frente deixando os ingleses matarem indianos, até que o último, até que ele mesmo fosse santa e maravilhosamente morto? E que tal sugerir aos cristãos, todos eles, que, para ensinar a humildade à raça humana passem finalmente a dar a outra face – que até aqui não deram não, salvo engano de minha parte?
O fato é que fiquei maravilhado com o livro de Betty Fuks, menos com as suas premissas e com as suas conclusões (no que se refere aos judeus). E isto me lembra uma outra história: “Um discípulo perguntou ao seu rabino hassídico como fazer para que a sua prédica na sinagoga não chateasse muito a congregação. O rabino disse: Faça um discurso sem introdução, corte as conclusões, e não ponha nada no meio.”
Eu próprio, infelizmente, não sou um bom discípulo desse rabino. E Fuks também não: A meu ver, o “meio” do livro é uma belíssima aula tanto de psicanálise quanto de epistemologia. Mas não custa rir um pouco. Não porque rir seja o melhor remédio, mas porque sem ele a vida toda passa a ter gosto de remédio. Sou, portanto, um bom discípulo de Winnicott, ou pelo menos tento ser.
Mas voltando ao ponto: Fuks fez um recorte dentro de uma questão teórica e fez quase tudo o que era possível, e muitíssimo bem, a meu ver, no interior desse limite. Mas é ela própria quem diz ao final do livro que à psicanálise não cabe limitar-se ao já sabido, e o que estou pedindo a ela aqui é que faça um novo estudo, sem prazo, sobre o que há antes do exílio, e sobre por que esse antes é tão importante. Fuks certamente não educou os seus filhos desde o início com base no pólemos, nem os jogou de saída na pólis, para aprenderem a viver no exílio do colo da mãe. Isto é óbvio, porque senão não haveria, na dedicatória do livro, esse agradecimento tão comovido a “Andréia, Anna e Daniel, aqueles que amorosa e incondicionalmente me incentivaram a ultrapassar os obstáculos e a prosseguir com a escrita.” Esse incondicionalmente não teria existido se a autora lhes tivesse conferido a “voca-ção do exílio” desde o início.
É desse início que estou falando. Ao livro falta a primeira parte. Ou então um equilíbrio interno entre a tendência de Shamai e a tendência de Hilel, que o tornasse suficientemente completo.
Cá entre nós: Nenhum paciente procura a análise porque tem saudades do paraíso que teve e perdeu. Ele a procura porque tem saudades de um paraíso que não teve, e por isso ainda não perdeu. Por outro lado, nenhum paciente deixa a análise porque aceitou a condição de ‘exilado’. O paciente só deixa a análise se, ao aceitar essa condição como parte da vida adulta – o exílio da infância – recupera a capacidade de conviver com os próximos sem os ressentimentos que essa perda, quando mal assimilada, acarreta. Coloca assim num mínimo de equilíbrio o dentro e o fora, o princípio do prazer e o princípio de realidade, o eu e o outro. Mas é a esse equilíbrio instável, que não é um equilíbrio entre dois opostos, mas um contínuo ininterrupto entre regiões distantes, que Winnicott chama de “espaço transicional”, e que De-leuze aclama como uma das maiores contribuições da psicanálise à filosofia.
Que eu saiba, a psicanálise não expulsa o paciente para o exílio. (Os antigos kleinianos o faziam, e conhecemos os resultados). Ao contrário, ela o acolhe e lhe permite deixar de se sentir um pária, um apátrida, e só então, depois de acolhido, ele aceita que o exílio é a condição humana, não só a dele, e então já pode ir embora. Essa acolhida não precisa ser explícita, como ad-voga Winnicott na sua teoria (pois na prática a acolhida winnicottiana é tão discreta quanto a dos bons psicanalistas clássicos, esses que, pela sua experiência, acabaram jogando fora a fria neutralidade dos seus tempos de calouros). Mas tem que ocorrer a acolhida – sob pena de instaurar-se uma relação sado-masoquista que não precisa de chicote para funcionar. Quando Lacan disse (segundo ouvi dizer) que o melhor paciente é aquele que não precisa de análise, estava selada a sorte do paradigma clássico: O melhor paciente, para o psicanalista “clássico”, é aquele que teve bastante do que precisava, não tem mais necessidades emocionais, e por isso pode simplesmente deitar no divã e brincar com o analista. Pois esse tipo de paciente já vive no espaço transicional, adquiriu a capacidade de enriquecer com os bens culturais e de ampliar cada vez mais esse espaço, preenchendo-o com coisas cada vez mais bonitas, não precisando mais tanto da presença da figura materna para defendê-lo dos terrores do mundo – interno e externo.
Freud, é óbvio, viveu intensamente no espaço transicional, e Lacan também, com o seu simbólico, e ambos pensaram coisas que só a idéia da transicionalidade – nem razão nem emoção, nem prazer nem realidade, nem ego nem id nem superego, apenas bandas de Moebius e nós bohomeanos – poderia explicar. Mas eles não chegaram a teorizar sobre a transicionalidade, talvez pelo mesmo motivo que levou Einstein a rejeitar tão violentamente o princípio da incerteza de Heisenberg: a incerteza não fazia parte dos seus paradigmas, nem do super-paradigma (“é possível saber tudo, porque tudo está incluído no determinismo”), que legitima os paradigmas secundários. (Lacan fala de um “resto”, mas creio que o deixa à margem...).
Segundo Loparic, que com isso me surpreendeu, Winnicott chegou a esta idéia ao se dar conta de que a violência das crianças desadaptadas, depois de evacuadas de Londres durante a Guerra, era um sinal de esperança, não de destrutividade. Que o ato destrutivo pudesse ter um sentido contrário levou-o a cismar até se dar conta do paradoxo – pois só isso explica essa aparente contradição. Mas aí está a banda de Moebius que o ilustra tão bem. Já Freud, sabemos todos, nunca abriu mão da sua crença na destrutividade humana, nem na pulsão de morte, nem na hostilidade básica do homem, ou seja na radical descontinuidade entre o bem e o mal. Pelo que pude depreender de um outro livro, “Política e Psicanálise – o Estrangeiro”, de Catarina Koltai, Lacan também não. Para ambos o bicho homem é um ser mais deplorável que admirável.
E isso me leva de volta a Hilel e Shamai. Certa vez eclodiu entre eles e seus discípulos a controvérsia: O homem devia ou não devia ter sido criado? Os shamaianos disseram: Não devia. Os hilelianos disseram: Devia. Por fim venceram os shamaianos, mas os hilelianos não se conformaram, e acabou-se chegando a um compromisso: “o homem não devia ter sido criado, mas já que o foi, que faça disso o melhor que puder.” Engraçado pensar em Winnicott discutindo tais coisas com Freud. Ou com Lacan.
Voltando, então, à questão de Freud e a judeidade, gostaria de acrescentar duas coisas.
A primeira diz respeito precisamente à sua judeidade. Recebi a tempo, graças à Internet, a resenha de um professor de psicologia israelense para o livro “Por que teria Freud rejeitado Deus?”, de uma psicóloga americana. Ele desanca o livro, e entre outras coisas diz que Jakob Freud não era nenhum erudito em judaísmo, que ler a Bíblia numa edição ilustrada era prova de afastamento do judaísmo, e não de apego a ele, que Freud podia perfeitamente ter recebido uma educação judaica digna do nome, se os pais quisessem, que Amália Freud reunia a família nas noites de Natal, não só nas grandes festividades judaicas, e assim por diante. Ou seja: Quanto à cultura judaica de Freud, diz o israelense, “Pffuui”. Ainda assim, para um homem que aprendeu espanhol sozinho para ler o Dom Quixote, acumular um bom número de conhecimentos judaicos não era difícil. Mas não se deve endeusar esses conhecimentos e exagerar sua profundidade. Chemouni conta (de modo fascinante) que Freud passou sua juventude tentando tornar-se um intelectual alemão, fazendo parte de um clube nacionalista de cultura alemã, até ser expulso em 1878, percebendo, com meio século de antecedência, que a rejeição alemã aos judeus era “final”, muito antes da “solução” homônima que acabou acontecendo. Só então, depois de expulso, assumiu a condição explícita de judeu. E passou o resto da vida mais como grande anti-anti-semita que na condição de integralmente judeu. Chemouni conta também que, mesmo não assumindo publicamente sua simpatia pelo Sionismo, deu a um de seus filhos o dinheiro necessário para matricular-se numa das várias agremiações sionistas que então surgiam em Viena. E também conta que ele gostou muito quando lhe disseram, bem antes da Guerra, que muitos jovens judeus que chegavam à então Palestina traziam como única bagagem um e-xemplar de “O Capital” e outro da “Interpretação dos Sonhos”. E Moshê Ater, que traduziu “Moisés e o Monoteísmo” para o hebraico, e lhe acrescentou um erudito pós escrito (não muito elucidativo quanto à questão da judeidade), conta que a única tradução para a qual Freud escreveu um pre-fácio exclusivo foi a de “Totem e Tabu” para o hebraico.
Outra coisa: uma injustiça a meu ver cometida por Fuks, e que eu gostaria de questionar, é com relação a Gerard Haddad, autor de “O Filho Ilegítimo”, o psicanalista judeu discípulo de Lacan, que ensinou ao mestre um pouco de Talmud.
Diz Fuks sobre ele: “Haddad (...) termina por incorrer no erro de juda-izar a psicanálise e psicanalisar Freud. Com isso desperdiçou a possibilidade de refletir sobre uma possível articulação entre as interpretações talmúdicas e psicanalíticas como constitutivas de dois campos que mantêm entre si uma ligação e uma oposição necessária à preservação de suas próprias diferenças e semelhanças.”
A meu ver, é uma reprovação apressada e injusta, porque foi exatamente isso que Haddad tentou fazer, mas utilizando para tanto a fonte primária, o próprio Talmud, mais que as idéias desses maravilhosos “talmudistas” franceses que Fuks tão bem articula. Aparentemente, Fuks reprova o livro todo a partir do seu primeiro capítulo, onde ele realmente comete esse “pecado” (analisando o “sonho da injeção de Irma”). Mas na página 33 ela mesma permite a Anzieu fazer a mesmíssima coisa: acrescentar associações pessoais aos sonhos de Freud (o “Vaticano”, que Anzieu localiza no sonho de Freud, e que o próprio Freud não menciona). Esse tipo de injustiça me deixa triste.
A injustiça principal, porém, é porque Haddad buscou a mesma coisa que Fuks, embora de um modo mais literal, menos erudito e menos brilhan-te. E como testemunha de defesa – de Haddad e minha, naturalmente – cito a resenha escrita por Paulo Blank para o Caderno Idéias, na época do lan-çamento do livro, redigida quase nos mesmos termos, com as mesmas preo-cupações e as mesmíssimas intenções que este trabalho de Fuks, ou seja, reconhecendo em Haddad exatamente as mesmas coisas que ela tão bem percebe nessas ‘articulações entre as interpretações talmúdicas e psicanalíticas’, desde as quais ela nos manda com tanta doçura para o exílio.
Uma última contribuição: recebi do México, também via Internet (hoje em dia nem a “cola” conhece mais fronteiras...) um artigo de uma psicanalista argentina, “Freud e o Velho Testamento”, no qual ela fala da diferença entre os estilos “rabínico” e “patrístico”, o primeiro característico do Velho Testamento, o segundo, do Novo. Segundo ela, o estilo rabínico é exata-mente esse que Fuks identifica em Freud e na psicanálise: Polissemia, relação entre textos aparentemente desconexos, indefinição de tempo e espaço, enfim, “exílio”, exigindo do leitor um trabalho sistemático de interpretação para que o texto adquira sentido e vida. Já o estilo “patrístico”, que herda mais do pensamento grego que do pensamento judaico, é preciso, definidor, unívoco tanto quanto possível, busca a exatidão dos termos e não sua “liberdade poética”. É uma diferença parecida com a que existe entre a poesia, com sua “licença”, e a prosa, com seu rigor. E ela acrescenta a reflexão de que o estilo patrístico caracteriza o que Kuhn, segundo Loparic, chama de “ciência normal”, a pesquisa realizada cotidianamente em tempos de paradigmas estáveis e confiáveis. Já o estilo “rabínico” caracteriza justamente a ciência em tempos de “revolução paradigmática”, conforme o termo de Kuhn, quando os cientistas vêem-se impossibilitados, por falta de ferramentas definidas, de proceder à pesquisa dita “normal” e passam a coletar fatos, dados e inferências como o fazem num período “pré-científico”. Mas é este período que permite chegar ao novo paradigma, caso contrário não ocorreria a “revolução”. Portanto, Fuks tem toda a razão quando diz que só o ‘exílio’ permite a renovação, enquanto o cidadão da ‘pólis’ produz um saber que acumula mais e mais daquilo que já se tinha de sobra. A controvérsia entre Kojève e Lacan, que Fuks menciona, sobre qual tradição religiosa mais contribuiu para o desenvolvimento do pensamento ocidental, deveria terminar em empate, pois o pensamento cristão possibilitou a ciência dita “normal”, e o pensamento judaico possibilitou a ocorrência da ruptura de paradigmas, e portanto as revoluções científicas.
De qualquer modo, mesmo tendo feito tantos questionamentos ao trabalho de Fuks, tenho certeza de que ele, em si mesmo, enquanto trabalho concreto sobre uma questão definida e importante, é magnífico. Mesmo afirmando que falta-lhe uma complementação, ou um preâmbulo, admirei profundamente a sagacidade, a precisão e a beleza com que a autora constrói os seus argumentos, e fiquei muitíssimo comovido com a legitimação por ela feita a esse velho pensamento judaico, tão vetusto mas tão contemporâneo no seu nomadismo semita e na sua inconclusividade poética que resgata para o humano, como disse Blank na supra-citada resenha, “a figura do Excluído, enraizado na trama essencial da obra freudiana e fora, portanto, da des-diferenciada ‘maioria compacta’. (...) É esta a linguagem do Talmud, e sem dúvida também a da interpretação psicanalítica, que pressupõe a existência de um outro texto nas entrelinhas do texto, e de outro nas entrelinhas daquele, rendendo-se finalmente à radical impossibilidade de tudo saber, sonho máximo do Ocidente [moderno], ou seja, à impossibilidade da onipotência”.
Só faltou ali a palavra ‘exílio’, mas a idéia do ‘excluído’, colocada por Blank, dá uma medida ainda mais atroz a esse quase—destino judaico ao qual Fuks e seus dois ilustres amigos (Katz e Chemouni) atribuem as virtudes de uma “vocação”.
Algumas observações, aliás, para Chaim Katz, por cuja brilhante resenha fiquei conhecendo o livro de Fuks: Primeiro, a não conjugação do verbo ser no presente do indicativo, na língua hebraica, não “questiona” o presente e a presença: toma-as a um só tempo por óbvias e por evanescentes. Paradoxo. Por isso o judeu – e o judaísmo – nunca é, está sendo, e esta é a realidade humana, que tantos denegam. Segundo, discordo quando ele diz, a partir de Fuks, que “a judeidade (recusa da ortodoxia) é um desejo de dife-rença”. Isto, por excesso de abstração, apaga a especificidade da questão dis-cutida, porque todo aquele que se afasta da sua cultura de pertença “deseja a diferença”. Portanto, isto não se aplica especialmente ao judaísmo. O judaísmo certamente ama a renovação, como um desenvolvimento do mesmo, mas ama muito pouco a inovação, instauradora da diferença. Tanto que as proposições rabínicas de inovações, raras vezes aceitas pela comunidade dos rabinos, mantêm esse título, de ‘inovação’, por muitas gerações. Se fossem fatos corriqueiros não precisariam de um nome. Por isso Freud tinha que ser ateu – não era suficiente que ele fosse judeu. O judaísmo certamente abomina a mesmidade, mas as diferenças de opinião amadas pelo judaísmo sempre partem de uma base – um ‘mesmo’ mínimo – totalmente aceito pelos dois lados. Por isso Hilel e Shamai se amavam. E por isso Freud tinha que ser judeu, apesar de ateu! (No Grande Sinédrio de Jerusalém – composto por setenta juízes – havia um princípio: Quando uma sentença era unânime, recomeçava-se o julgamento, pois a unanimidade a tornava “manca” – a sentença “inteira” precisava de maioria, e portanto de alguma oposição. Sem o jogo dos contrários, algo estava errado.)
O que o judaísmo trouxe como contribuição à humanidade, então, não é só um Deus que ao mesmo tempo é duplo e é nada, também trouxe uma razão que, por mais afiada que seja, nunca é suficiente. E que só agora, no finzinho mesmo do século XX, começou a ser digerida pela humanidade pós-moderna, herdeira de Heisenberg (que amava o Nazismo...), com as fascinantes idéias da desterritorialização, da ressignificação, da trans-disciplinaridade, e dessa possibilidade tão antiga quanto o homem mas tão reprimida (a golpes de cassetete, não de superego) até recentemente, e que é a minha “maravilha” favorita, a transicionalidade, mãe do paradoxo, mãe do colo como lugar de onde se parte, não para onde se volta, e mãe do ursinho de pelúcia que tantos adultos tanto amam em seus mais variados disfarces. Mãe, também, da possibilidade de alguém ser ao mesmo tempo judeu ou palestino ou português ou espanhol ou italiano ou turco ou mesmo armênio, e agora africanos de vários lugares, e viver em outro país, sem medo. Os na-zistas – bisnetos bastardos de Descartes [vide Bauman] – odeiam a transicionalidade e abominam o paradoxo. Pois a transicionalidade permite a tantos povos em diáspora amarem a terra onde vivem agora, e quem sabe até serem amados pelos que lá já viviam, porque na era da pós-modernidade muita coisa de um lugar adquire o direito de morar em outro, inclusive pessoas, algo inimaginável nos tempos medievais e modernos (mas não nos tempos antigos!), quando os homens se dividiam não em hóspedes e hospedeiros, mas em superiores e inferiores, em colonizadores e colonizados, ou em nacionais e estrangeiros, portanto expulsáveis (e atualmente tantos há que desejam retornar a esses tempos...)
A transicionalidade como paradigma do pensar está em Freud e Lacan, mas não explicitamente, e por essa razão algumas vezes surpreendi no livro de Fuks situações que seriam facilmente resolvíveis se esse recurso lógico estivesse em funcionamento (por exemplo, do qual discordo, a pulsão, o “reino entre”). Mas não estava, induzindo a optar entre uma coisa e outra (não neste caso, é óbvio).
Assim como não se deve perguntar ao bebê, sobre o ursinho, “você inventou isto ou o encontrou por aí?”, ou à criança, “você gosta mais da mamãe ou do papai?”, tampouco se deve perguntar ao adulto: “Você gosta mais da sua cultura de adoção ou da sua cultura de pertença?”, porque essas perguntas fazem parte do mundo não paradoxal, não transicional, do mundo artificial cartesiano, dicotômico, racionalista, onde muitas perguntas ficam sem resposta porque são feitas com base na premissa errada (o Zen Budismo explica...) – de que cada coisa tem o seu lugar, e cada lugar a sua coisa, e de que cada pessoa é o que é e ponto final, e por isso a idéia do devir – tão simples no reino do paradoxo – acaba tão pouco compreendida e assimilada no reino da dicotomia, e também de que entre a fantasia e a realidade há uma barreira que, quando cruzada, leva diretamente ao hospício. Por falar nisso, maravilhosa é a piada do hospício pós-moderno, em cujo portão há uma placa que diz: “Nem todos os que estão, são, e nem todos os que não estão, não são”... Piada, aliás, que surgiu bem antes da pós-modernidade. Sabiam os loucos o que diziam?... (Até a famosa piada de Cracóvia–Lemberg (contada por Freud) fica muito mais compreensível quando explicada pela idéia da transicionalidade, em vez de pela idéia lacaniana do “Outro”.)
Concluindo: Se Hilel está para Shamai como Heisenberg está para Einstein e como Winnicott está para Freud, fica justificada a minha discus-são. Gostaria, apenas, que todos lessem o fascinante trabalho de Betty Fuks, pois sem essa base adianta muito pouco compreender Winnicott. Como disse o próprio, não me lembro mais onde: “Não é possível ser original a não ser a partir de uma tradição”.
Um outro conto hassídico diz que, quando perguntaram a um hassíd se o Messias, quando chegasse, se revelaria adepto do Hassidismo ou ficaria com o judaísmo clássico, respondeu: “Ficaria com o judaísmo clássico. Porque se ele for um adepto do Hassidismo os outros não o aceitarão”. Pois é isso que eu também digo: Nós, que “acreditamos” em Winnicott, “acreditamos” em Freud também (e em muitas coisas de Lacan), porque muitos pacientes realmente não precisam tanto do paraíso, e certamente não para sempre. Mas os que “acreditam” em Freud e Lacan raramente abrem espaço para as idéias de Winnicott, e com isso – penso eu – deixam a sua psicanálise não no exílio, e sim na grande cidade que armaram para si no meio do deserto. E dali, do conforto de sua cidadela paradigmática, alheios ao que eles próprios chamam de ‘novo’, chutam os traseiros dos pacientes mandando-os passear no deserto. Dizem as crianças, e eu concordo: “Assim não vale”. (E eu o digo por experiência pessoal com dois psicanalistas, um dos quais aferrou-se ao velho paradigma e quase me levou à loucura, e o outro mudou de paradigma e me salvou a vida).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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