CIDADANIA PLANETÁRIA
Pontos para a reflexão
Moacir Gadotti
Instituto Paulo Freire
Universidade de São Paulo
“Estrangeiro eu não vou ser. Cidadão do mundo eu sou”.
Milton Nascimento
Se as crianças de nossas escolas entendessem em profundidade o significado das
palavras da canção de Milton Nascimento, estariam iniciando uma verdadeira revolução pedagógica e curricular. Como posso sentir-me estrangeiro em qualquer território se pertenço a um único território, a Terra? Não há lugar estrangeiro para terráqueos, na Terra. Se sou cidadão do mundo, não podem existir para mim fronteiras. As diferenças culturais, geográficas, raciais e outras enfraquecem, diante do meu sentimento de pertencimento à Humanidade.
Mas será que somos realmente cidadãos/cidadãs do mundo? O que é ser
cidadão? O que é cidadania?
1. Ambigüidade do conceito de cidadania
Cidadania é essencialmente consciência/vivência de direitos e deveres. Não há
cidadania sem democracia embora possa haver exercício não democrático da cidadania.
A democracia fundamenta-se em três direitos: direitos civis (como segurança e
locomoção); direitos sociais (como trabalho, salário justo, saúde, educação, habitação
etc.); direitos políticos (como liberdade de expressão, de voto, de participação em
partidos políticos e sindicatos etc).
(*)
Este texto foi apresentado na Conferência Continental das Américas para a Carta da Terra (Cuiabá, Mato Grosso, 30 de novembro a 3 de dezembro de 1998). Fui despertado para este tema em 1992,representando a ICEA (Internacional Community Education Association) na Rio-92 (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento), chamada de “Cúpula da Terra”. A Rio-92
elaborou e aprovou a Agenda 21. No Fórum Global-92, na mesma época, fui um dos coordenadores da “Jornada Internacional de Educação Ambiental” que elaborou o “Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global”. Mas foi na Conferência de Cuiabá, que teve a coordenação de Carlos Alberto Maldonado pelo Instituto Creatio e Miriam Vilela pelo Conselho da Terra
e o apoio do Instituto Paulo Freire, que pude avaliar com mais exatidão a importância estratégica que tem a questão ambiental para a educação brasileira. Desta Conferência participou também ativamente Leonardo Boff. Nela foi aprovada a “Carta da Terra para a América Latina e Caribe”, um documento de trabalho para fortalecer o processo educativo de elaboração da Carta da Terra a ser proclamada pelas
Nações Unidas em 2002. Atualmente o Instituto Paulo Freire coordena a “Rede Mundial pela Carta da Terra” que anima uma consulta mundial para sistematizar as contribuições à redação da Carta da Terra na perspectiva da educação.
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O conceito de cidadania, contudo, é ambíguo. Em 1789 a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão estabelecia as primeiras normas para assegurar a
liberdade individual e a propriedade. É uma concepção restrita de cidadania. Assim,
podem existir diversas concepções de cidadania: uma concepção liberal, neoliberal,
socialista democrática (o socialismo autoritário e burocrático não admite a democracia
como valor universal e desprezou a cidadania como valor). Existe hoje uma concepção consumista de cidadania sustentada na competitividade capitalista. Ela se restringe ao direito do cidadão de exigir a qualidade anunciada dos produtos que compra. Seria uma cidadania de mercado. Em oposição a essa concepção restrita existe uma concepção plena de cidadania. Ela não se limita aos direitos individuais. Ela se manifesta na mobilização da sociedade para a conquista/construção dos direitos acima mencionados, que devem ser garantidos pelo Estado. É uma cidadania que visa também à conquista e construção de novos direitos. O cidadão que é cumpridor das leis, paga impostos e escolhe seus representantes políticos está exercendo a cidadania. Mas a cidadania plena é mais exigente. Ela cria direitos, novos espaços de exercício da cidadania.
A concepção liberal e neoliberal de cidadania entende que a cidadania é apenas
um produto da solidariedade individual (da "gente de bem") entre as pessoas e não uma conquista e construção no interior do próprio Estado. A cidadania implica em instituições e regras justas. O Estado, numa visão democrática e solidária precisa exercer uma ação - para evitar, por exemplo, os abusos econômicos dos oligopólios – fazendo valer as regras definidas socialmente. Não basta conquistar o poder de Estado, é preciso ocupá-lo para que seja melhor qualificado para o exercício de suas funções, para torná-lo mais competente no atendimento ao cidadão.
Embora haja consenso em torno do valor da cidadania, ela é compreendida de
formas muito diferentes e até antagônicas. Como afirma Adela Cortina (op. cit.),
existem dimensões complementares da cidadania:
1)cidadania política: participação numa comunidade política;2)cidadania social: justiça como exigência ética (da sociedade de bem-estar à sociedade justa);
3)cidadania econômica: a empresa cidadã, ética e a transformação da economia:
os trabalhadores do saber, o terceiro setor (privado, porém, público);4)cidadania civil: a Sociedade Civil e a civilidade, civilização. Valores cívicos:liberdade, igualdade, respeito ativo, solidariedade, diálogo;5)cidadaniaintercultural: multiculturalidade,inter-culturalidade,transculturalidade. A interculturaldade como projeto ético e político (miséria doetnocentrismo). A questão da identidade. A noção de cidadania planetária (mundial) sustenta-se na visão unificadora do planeta e de uma sociedade mundial. Ela se manifesta em diferentes expressões: “nossa humanidade comum”, “unidade na diversidade”, “nosso futuro comum”, “nossa pátria comum”.
Cidadania Planetária é uma expressão adotada para expressar um conjunto de
princípios, valores, atitudes e comportamentos que demonstra uma nova percepção da
Terra como uma única comunidade (BOFF, 1995). Freqüentemente associada ao
“desenvolvimento sustentável”, ela é muito mais ampla do que essa relação com a
economia. Trata-se de um ponto de referência ético indissociável da civilização
planetária e da ecologia. A Terra é “Gaia” (LOVELOCK, 1987), um super-organismo
vivo e em evolução, o que for feito a ela repercutirá em todos os seus filhos.
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2. Processos e modelos de globalização
Há vários processos de globalização. Destacamos pelo menos dois deles:
1º O processo de globalização que estendeu um modelo de dominação
econômica, político e cultural totalitário e excludente: a globalização do modo de
produção capitalista. Nele, podemos distinguir países globalizadores e países
globalizados. Aqui, a globalização é essencialmente excludente e tem criado as
condições para um retrocesso brutal do ponto de vista dos direitos da maioria dos
cidadãos do mundo todo. Nesse processo, a economia de mercado tem favorecido as
disputas regionais através de blocos: o europeu, o asiático, o norte-americano ampliado e o latino-americano, retardando – ao invés de promover - uma real globalização. O mundo, do ponto de vista econômico, continua dividido. Agora dividido em blocos, em grandes interesses regionais.
2º O processo de globalização propiciado pelos avanços tecnológicos, que criam
as condições materiais (não ético-políticas) da cidadania global, a globalização da
Sociedade Civil. A globalização da Sociedade Civil possibilita novos movimentos
sociais, políticos e culturais intensificando a troca de experiências de suas particulares
maneiras de ser, questionando as desigualdades no interior dos Estados-Nação. A questão fundamental colocada por esses movimentos é a da reterritorialidade: uma
cidadania planetária que supere as nacionalidades (e sobretudos os nacionalismos), mas que, ao mesmo tempo, reconheça expectativas éticas, ecológicas, de gênero etc como constitutivas de um direito à institucionalidade como novos “Estados-Nação” (por isso fala-se, por exemplo, em “Nação negra”, “Nação indígena” etc). São novas
territorialidades que combinam os determinantes econômicos com os da etnicidade, de gênero etc. A cidadania nacional perde o seu território de origem e aparece uma
cidadania pluriterritorial. Este é o espaço (ciberespaço?) das ONGs e das estruturas
intergovernamentais que tomam fatias de poder cada vez maior do Estado-Nação. O desafio que se coloca a essas novas territorialidades é o de fortalecimento da
perspectiva democrática no seio da própria Sociedade Civil.
Muitos movimentos encontram formas de legitimação de seus atos no plano
internacional. Veja-se o exemplo do poderoso movimento ecológico Greenpeace. O Greenpeace faz campanhas de preservação da natureza em quase todo o mundo. A World Wild Life (WWF) é outro exemplo importante. Ela é uma das maiores
organizações em defesa da ecologia com 4,7 milhões de membros e atividades em mais de cem países. É maior do que algumas nações. Ainda para citar outro exemplo: o Earthwatch patrocina pesquisas científicas em mais de cem países, incluindo saúde,
arqueologia e sociologia.
Na visão do primeiro processo, centrado no modelo econômico-político neoliberal, a cidadania global já teria sido alcançada. É o que sustentam os globalistas.
Na visão do segundo processo, a cidadania global é considerada como um processo
lento de construção, inconcluso, na medida em que existem ainda muitos excluídos da
globalização. Diante do fenômeno da globalização não podemos nos comportar nem
como os apocalípticos, que vêem na globalização a fonte de todos os males atuais e nem como os integrados que vêem nela a salvação ou a condição final da realização plena do ser humano.
Ouvimos com freqüência que um dos objetivos dos projetos de informática nas
escolas dos governos é “educar para uma cidadania global”, numa sociedade
tecnologicamente desenvolvida, e que os novos Parâmetros Curriculares Nacionais
visam a adequar o currículo à globalização etc. Mas a que tipo de globalização se
referem? Não o mencionam, supondo que a globalização econômica é a única forma
possível de globalização. Não há dúvida de que, na visão mais corrente, o termo
“global” está muito mais ligado ao processo de globalização econômica do que ao
processo de globalização (solidariedade) da Sociedade Civil.
A Sociedade Civil mundial ou global está ainda em formação e “abrange uma
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grande variedade de sociedades contemporâneas, a leste e a oeste, pobres e ricas,
centrais e periféricas, desenvolvidas e subdesenvolvidas, dependentes e agregadas, o
conceito que se quiser usar. Apesar das diferenças existentes entre essas sociedades
quanto a seus níveis sociais, econômicos, políticos, tecnológicos, culturais, é possível
distinguir nelas estruturas, relações e processos semelhantes” (Maria Lúcia Azevedo
Leonardi, in CAVALCANTI, p. 195). Entre os traços característicos das sociedades
contemporâneas, Maria Lúcia Azevedo Leonardi (idem, p. 196-207) destaca: o
desenvolvimento tecnológico, a ocidentalização da cultura, a desterritorialização e o
declínio das metrópoles, o enfraquecimento dos Estados-nação, “elos das sociedade
global”, segundo Octavio Ianni (1992:96).
Diante da ambigüidade do termo “global”, preferimos falar de “cidadania
planetária” e não de “cidadania global”. Além do mais, desejamos realçar nosso
pertencimento ao planeta e não ao processo de globalização. O conceito de “cidadania
global” estaria muito mais ligado ao recente processo de globalização provocado pelos avanços tecnológicos, enquanto a planetaridade continua sendo um desejo, um sonho que vem de muito mais longe. A diferença é que hoje “dadas as ameaças que pesam sobre todos nós, a Terra ganhou uma nova centralidade” (BOFF, 1995:10).
A planetaridade está na raiz de muitas filosofias, religiões e movimentos sociais,
políticos e até lingüísticos:
1º A helenização e a romanização constituíram-se, a seu modo, num processo de
globalização: todos os homens, em todos os lugares, deveriam ser gregos ou romanos.
Não vamos citar aqui o milenarismo nazi-fascista para não gerar tanta polêmica em
torno do termo. O sonho autoritário tem se constituído sempre na busca de tornar
hegemônica uma certa visão de mundo, mesmo quando é totalmente inviável. Por
exemplo, estender o modo de vida americano aos chineses, tentando fazer com que cada um deles possuísse um carro, seria um desastre: os chineses esgotariam rapidamente as reservas de combustível do planeta. E mais: não sairiam do lugar!
2º No campo das religiões, a cidadania planetária sempre se constituiu num
pressuposto importante do movimento evangélico que, em tese, deveria reunir todos em defesa da vida, independentemente de fronteiras geográficas e sociais.
3º A ilustração também falava da mundialização como utopia, como
reconciliação universal de todos e da criação de um Estado mundial.
4º A literatura mundial está cheia de exemplos. Escreveu o autor de Os
miseráveis: “O futuro é um edifício misterioso que levantamos na Terra com as próprias mãos e que mais tarde deverá servir-nos a todos de moradia” (Vitor Hugo).
5º A cidadania planetária é um antigo sonho socialista (utópico). Há muito de
utopia, ainda hoje, no pensamento socialista diante da globalização capitalista
excludente. Na visão/realização socialista autoritária (foi essa face do socialismo que
fracassou, felizmente, e não o sonho socialista) predominou a imposição a uma visão de mundo a todos, restringindo-se o respeito às singularidades.
6º O movimento mundial pelo Esperanto, pelas suas características, constitui-se
na manifestação desse impulso de relacionar-se para além das fronteiras. O Esperanto
vem buscando essa aproximação planetária pela tentativa de superar a barreira
lingüística. Ele pretende ser a língua da cidadania planetária, mas as novas tecnologias
que possibilitaram a globalização, impuseram outra língua: o inglês. A língua inglesa e
o computador tornaram-se os instrumentos da nova cidadania global.
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O franceses preferem falar de “mundialização” em vem de globalização. De
fato, a agilização dos sistemas de comunicações que a telecomunicação e a informática
possibilitaram, foi realmente uma “mundialização”, inaugurando uma nova era, a da
informação (não ainda a era do conhecimento). Isso porque tornaram acessível às
empresas, instituições e indivíduos, um enorme volume de dados, imagens, sons
(multimídia) etc. possibilitando a comunicação em tempo real, independentemente das
distâncias.
A globalização está muito mais ligada ao fenômeno da mundialização do
mercado, que é um tipo de mundialização. E mesmo esta mundialização, fundada no
mercado, pode ser visa como uma globalização cooperativa ou como uma
globalização competitiva sem solidariedade. Entre o estatismo absolutista e a mão
invisível do mercado, pode existir (e existe) uma nova economia de mercado onde
predomina a cooperação e a solidariedade e não a competitividade selvagem, uma
“economia solidária” (SINGER, 1996), a verdadeira “economia da sustentabilidade”
(CAVALCANTI, 1998).
A globalização em si não é problemática, pois representa um processo de avanço
sem precedentes na história da humanidade. O que é problemático é a globalização
competitiva onde os interesses do mercado se sobrepõem aos interesses humanos, onde
os interesses dos povos se subordinam aos interesses corporativos das grandes empresas
transnacionais.
Assim, podemos distinguir uma globalização competitiva de uma possível
globalização cooperativa e solidária. A primeira está subordinada apenas às leis do
mercado e a segunda subordina-se aos valores éticos e à espiritualidade humana. O
movimento ético pela Carta da Terra tem-se distinguido pela busca de uma
globalização/planetarização solidária.
A cidadania planetária supõe o reconhecimento e a prática da planetaridade,
isto é, tratar o planeta como um ser vivo e inteligente. Como diz Francisco Gutiérrez, “a
planetaridade deve levar-nos a sentir e viver nossa cotidianidade em relação harmônica
com os outros seres do planeta Terra” (GUTIÉRREZ, 13).
3. Cidadania planetária ou global?
Como se situa o movimento ecológico diante desse tema? É importante notar,
como o fez Alícia Bárcena, que “a formação de uma cidadania ambiental é um
componente estratégico do processo de construção da democracia”. Para ela, a
cidadania ambiental é verdadeiramente planetária pois no movimento ecológico, o local
e o global se interligam. A derrubada da floresta amazônica não é apenas um fato local:
é um atentato contra a cidadania planetária.
O ecologismo tem muitos e reconhecidos méritos na colocação do tema da
planetaridade. Foi pioneiro na extensão do conceito de cidadania no contexto da
globalização e também na prática de uma cidadania global de tal modo que hoje
cidadania global e ecologismo fazem parte do mesmo campo de ação social, do mesmo
campo de aspirações e sensibilidades. Porém, a cidadania planetária não pode ser apenas
ambiental já que existem agências de caráter global com políticas ambientais que
sustentam a globalização capitalista. Uma coisa é ser “cidadão da terra” e outra é ser
“capitalista da terra”. A construção de uma cidadania planetária tem ainda um longo
caminho a percorrer no interior da globalização capitalista.
A cidadania planetária deverá ter como foco a superação da desigualdade, a
eliminação das sangrentas diferenças econômicas e a integração da diversidade cultural
da humanidade e a eliminação das diferenças econômicas.
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Não se pode falar em cidadania planetária ou global sem uma efetiva cidadania
na esfera local e nacional. Uma cidadania planetária é por essência uma cidadania
integral, portanto, uma cidadania ativa e plena não apenas nos direitos sociais,
políticos, culturais e institucionais, mas também econômico-financeiros.
A cidadania planetária implica também na existência de uma democracia
planetária. Portanto, ao contrário do que sustentam os neoliberais, estamos muito longe
de uma efetiva cidadania planetária. Ela ainda permanece como projeto humano,
inalcançável se for limitada apenas ao desenvolvimento tecnológico. Ela precisa fazer
parte do próprio projeto da humanidade como um todo. Ela não será uma mera
conseqüência ou um sub-produto da tecnologia ou da globalização econômica.
4. Educar para a cidadania planetária
Antes de mais nada seria necessário definir o que significa educar. Para nós,
educar é impregnar de sentido as práticas, os atos cotidianos. Portanto, a competência
do educador tem uma dimensão ética, pela própria natureza do seu quefazer. A ética
não é mais uma coisa, um conteúdo, uma disciplina, um conhecimento que se deve
acrescentar ao quefazer educativo. É sua própria essência. “Meu novo paradigma é a
Terra vista pelos astronautas. Os homens vistos em uma única comunidade” tem
afirmado Leonardo Boff. Perguntaram a ele se, assumindo esse novo paradigma, ele não
estaria abandonando o da causa dos pobres – Teologia da Libertação. No livro
Ecologia, Grito da Terra, Grito dos Pobres ele responde a essa pergunta, afirmando que
a causa de fundo da Ecologia e da Teologia da Libertação é a mesma: a lógica que
explora as classes sociais - que cria pobres e oprimidos - é a mesma que explora a
natureza e exaure seus recursos. A opção pelos pobres é a opção pela Terra, que é o
grande pobre.
Educar para a cidadania planetária supõe o reconhecimento de uma comunidade
global, de uma Sociedade Civil planetária. As exigências da sociedade planetária devem
ser trabalhadas pedagogicamente a partir da vida cotidiana, a partir das necessidades e
interesses das pessoas. Para Francisco Gutiérrez, educar para a cidadania planetária
supõe o desenvolvimento de novas capacidades, tais como:
1) “sentir, intuir, vibrar emocionalmente (emocionar)
2) imaginar, inventar, criar e recriar
3) relacionar e inter-conectar-se, auto-organizar-se
4) informar-se, comunicar-se, expressar-se
5) localizar, processar e utilizar a imensa informação da ‘aldeia global’
6) buscar causas e prever conseqüências
7) criticar, avaliar, sistematizar e tomar decisões
8) pensar em totalidade (holisticamente)” (GUTIÉRREZ, 1997:41).
Uma educação para a cidadania planetária deveria nos levar à construção de uma
cultura da sustentabilidade, isto é, uma biocultura, uma cultura da vida, da
convivência harmônica entre os seres humanos e entre estes e a natureza (equilíbrio
dinâmico). Paulo Freire nos falava de uma “racionalidade molhada de emoção”. Morin
nos fala de uma “lógica do vivente” contra a “racionalidade instrumental” evidenciada
por Habermas. “A cultura da sustentabilidade deve nos levar a saber selecionar o que é
realmente sustentável em nossas vidas, em contato com a vida dos outros. Só assim
seremos cúmplices nos processos de promoção da vida. Criar vida é portanto criar a
cultura da sustentabilidade” (GUTIÉRREZ, 1997:76).
4.1 A ecopedagogia
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É nesse contexto que se está falando em “ecopedagogia” (Francisco Gutiérrez) e
“ecoformação” (Gaston Pineau).
O desenvolvimento sustentável tem um componente educativo formidável: a
preservação do meio ambiente depende de uma consciência ecológica e a formação da
consciência depende da educação. Nesse contexto, a ecopedagogia pode ser vista tanto
como
1)movimento pedagógico (como a ecologia) quanto como
2)abordagem curricular (reorientação dos currículos, PCNs, sistemas de ensino,
escola cidadã, pedagogia da práxis) e como
3)teoria e prática educacional. Sem uma ação pedagógica efetiva, de nada
adiantarão os grandes projetos de despoluição ou de preservação do meio
ambiente.
A ecopedagogia não é uma pedagogia escolar. A escola pode contribuir muito
mas a ecopedagogia pretende ir além da escola: ela pretende impregnar toda a sociedade
(educação formal e não-formal), tanto no ambiente de trabalho quanto no ambiente
doméstico. A ecopedagogia e a cultura da sustentabilidade deverão tornar-se temas de
debate muito importantes nas próximas décadas.
A ecopedagogia é uma pedagogia para a promoção da aprendizagem do
sentido das coisas a partir da vida cotidiana. Encontramos o sentido ao caminhar,
vivenciando o processo de abrir novos caminhos, e não apenas observando o caminho.
É, por isso, uma pedagogia democrática e solidária.
O que significa promover?
Ainda segundo Francisco Gutiérrez, que cunhou a palavra “ecopedagogia” no
início dos anos 90, promover é “facilitar, acompanhar, possibilitar, recuperar, dar lugar,
compartilhar, inquietar, problematizar, relacionar, reconhecer, envolver, comunicar,
expressar, comprometer, entusiasmar, apaixonar, amar” (GUTIÉRREZ, 1997:36).
O que significa caminhar com sentido?
Na “educação bancária”(Paulo Freire), não se discute o sentido da
aprendizagem, pois, para essa educação, aprender é um fim em si mesmo. A
ecopedagogia teve origem na “educação problematizadora” (Paulo Freire), que se
pergunta sobre o sentido da própria aprendizagem. Para Francisco Gutiérrez, “caminhar
com sentido significa, antes de mais nada, dar sentido ao que fazemos, compartilhar
sentidos, impregnar de sentido as práticas da vida cotidiana e compreender o sem
sentido de muitas outras práticas que aberta ou solapadamente tratam de impor-se”
(GUTIÉRREZ, 1997:39).
4.2 A ecoformação
Foi explorando a problemática da autoformação que Gaston Pineau criou o
neologismo “ecoformação” nos anos 80, relacionado-o às histórias de vida das pessoas.
Experiências cotidianas aparentemente insignificantes - como uma corrente de ar, um
sopro de respiração, a água da manhã na face – fundamentam as relações com si próprio
e com o mundo. A tomada de consciência dessa realidade é profundamente formadora.
O meio ambiente forma tanto quanto ele é formado ou deformado.
Nascida na pesquisa em educação permanente, a ecoformação se alimenta do
paradigma ecológico, interrogando-se sobre as relações entre o ser humano e o mundo.
Nós dependemos dos elementos naturais – o ar, a água, a terra e o fogo (Gaston
Bachelard) - mais do que estes dependem de nós, afirma Pineau. E acrescenta: no
entanto, no nosso desejo de dominá-los, eles desaparecerem do nosso campo de
consciência. A relação que nos liga a eles é uma relação de uso.
A ecoformação pretende estabelecer um equilíbrio harmônico entre o
homem/mulher e o meio ambiente. Ela se inscreve no conceito mais amplo de formação
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tripolar já anunciada por Rousseau (PINEAU, 1992:246-247): os outros, as coisas e a
nossa natureza pessoal. São três modelos formativos que participam do nosso
desenvolvimento ao longo de toda a vida - nossos mestres segundo Rousseau: a
heteroformação (amplamente dominante), a auformação (em vias de desenvolvimento) e
a ecoformação (ainda engatinhando).
5. Desafios da cidadania planetária
De toda maneira, diante deste cenário incerto, podemos apostar que a
mundialização é mais provável do que a fragmentação, pois ela se configura como a
tendência mais forte. Mas continua sendo a mesma aposta de tantos do passado. A
diferença é que agora ela está sendo possibilitada pela tecnologia, embora acessível
ainda a muito poucos. “A história é possibilidade e não fatalidade”, costumava nos dizer
Paulo Freire.
À primeira vista parece que hoje a cidadania, a tecnologia e a globalização estão
caminhando juntas. Contudo, precisamos distinguí-las, analisando seus limites e
possibilidades. Daí a nossa preocupação pedagógica em colocar aqui algumas questões
finais para a reflexão:
1ª Como construir uma cidadania planetária num país globalizado onde sequer
foi ainda construída a cidadania nacional? Essa não é apenas uma pergunta que deve
ser dirigida aos educadores, mas também aos políticos, aos comunicadores etc. Que
garantias teremos de que a Carta da Terra seja cumprida se ainda não foi cumprida a
Carta dos “Direitos Humanos”?
2ª Como fica a identidade diante da ocidentalização da cultura promovida pela
mídia e do domínio da língua inglesa na Internet (65% de inglês frente a 0,5% de
português)? A riqueza da humanidade é principalmente a sua diversidade. Se
entendermos por humanidade a diversidade, não estaríamos caminhando para a morte
intelectual da própria humanidade, provocada pela unificação da cultura e pela
mestiçagem?
3ª Estaremos gestando uma “cultura global”, esmagando todas as culturas
“particulares” e “locais”? Quais seriam as conseqüências desse processo de “unificação”
das culturas? Não é o mesmo processo de mundialização de uma cultura
particular/local? Essa gestação não estaria, por sua vez, possibilitando o crescimento do
fundamentalismo (religioso ou laico), acirrando as resistências comunitárias aos valores
culturais universalizantes? Certas culturas locais estão reforçando seus traços nos
levando a crer que o mundo continua fragmentado e não globalizado. O que está se
universalizando? Padrões de consumo e de produção?
4ª Como nos lembra a Carta da Terra de Cuba, aprovada em setembro de 1998, o
capitalismo promove o consumismo e é contrário em sua essência à proteção do meio
ambiente. O neoliberalismo procura destruir a comunidade para construir o indivíduo. A
cidadania planetária está fundada em valores universais consensuados, num mundo
justo, produtivo e num ambiente saudável. Que consensos podem ser construídos sob a
hegemonia capitalista? Ao mesmo tempo em que escrevemos os consensos, precisamos
inscrevê-los, ética e socialmente, na convivência social, como os consensos das nações
indígenas, inscritos na sua cultura, sem serem escritos.
5ª Devemos criticar o “desenvolvimento sustentável” porque é uma contradição
em si? As noções de desenvolvimento e de sustentabilidade seriam antagônicas? O
desenvolvimento sustentável é uma “armadilha do ecocapitalismo”, afirma Leonardo
Boff? Devemos criticar toda forma de desenvolvimento ou apenas a forma capitalista de
desenvolvimento? Francisco Gutiérrez coloca como condições do desenvolvimento
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sustentável: ser economicamente factível; ser ecologicamente apropriado; ser
socialmente justo; e ser culturalmente eqüitativo, respeitoso e sem discriminação de
gênero.
6ª Como seria uma “civilização da simplicidade” (Gorostiaga), da qualidade de
vida, da sustentabilidade, da igualdade e da alegria compartida?
É importante que a discussão continue em todos os espaços possíveis para que os
direitos da cidadania planetária sejam conquistados e mantidos. O Instituto Paulo Freire
vem fazendo essa discussão através de encontros e seminários e está organizando uma
Conferência Mundial sobre a “Carta da Terra na Perspectiva da Educação”, com o
objetivo de socializar as contribuições à redação da Carta da Terra, dos educadores em
todo o mundo e estimular a criação de uma rede mundial de educadores pela Carta da
Terra, com espaços de registros e divulgação de processos consolidados e experiências.
Essa é uma iniciativa, entre tantas, que busca garantir o que foi sustentado na Rio-92:
“A Terra é uma só nação e os seres humanos, seus cidadãos”.
“Um dia a vida surgiu na terra.
A terra tinha com a vida um cordão umbilical.
A vida e a terra.
A terra era grande e a vida pequena. Inicial.
A vida foi crescendo e a terra foi ficando menor, não pequena.
Cercada, a terra virou coisa de alguém, não de todos, não comum.
Virou sorte de alguns e desgraça de tantos.
Na história foi tema de revoltas, revoluções, transformações.
A terra e a cerca. A terra e o grande proprietário.
A terra e o sem terra.
E a morte”.
Herbert de Souza
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Moacir Gadotti
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Milton Nascimento
Se as crianças de nossas escolas entendessem em profundidade o significado das
palavras da canção de Milton Nascimento, estariam iniciando uma verdadeira revolução pedagógica e curricular. Como posso sentir-me estrangeiro em qualquer território se pertenço a um único território, a Terra? Não há lugar estrangeiro para terráqueos, na Terra. Se sou cidadão do mundo, não podem existir para mim fronteiras. As diferenças culturais, geográficas, raciais e outras enfraquecem, diante do meu sentimento de pertencimento à Humanidade.
Mas será que somos realmente cidadãos/cidadãs do mundo? O que é ser
cidadão? O que é cidadania?
1. Ambigüidade do conceito de cidadania
Cidadania é essencialmente consciência/vivência de direitos e deveres. Não há
cidadania sem democracia embora possa haver exercício não democrático da cidadania.
A democracia fundamenta-se em três direitos: direitos civis (como segurança e
locomoção); direitos sociais (como trabalho, salário justo, saúde, educação, habitação
etc.); direitos políticos (como liberdade de expressão, de voto, de participação em
partidos políticos e sindicatos etc).
(*)
Este texto foi apresentado na Conferência Continental das Américas para a Carta da Terra (Cuiabá, Mato Grosso, 30 de novembro a 3 de dezembro de 1998). Fui despertado para este tema em 1992,representando a ICEA (Internacional Community Education Association) na Rio-92 (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento), chamada de “Cúpula da Terra”. A Rio-92
elaborou e aprovou a Agenda 21. No Fórum Global-92, na mesma época, fui um dos coordenadores da “Jornada Internacional de Educação Ambiental” que elaborou o “Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global”. Mas foi na Conferência de Cuiabá, que teve a coordenação de Carlos Alberto Maldonado pelo Instituto Creatio e Miriam Vilela pelo Conselho da Terra
e o apoio do Instituto Paulo Freire, que pude avaliar com mais exatidão a importância estratégica que tem a questão ambiental para a educação brasileira. Desta Conferência participou também ativamente Leonardo Boff. Nela foi aprovada a “Carta da Terra para a América Latina e Caribe”, um documento de trabalho para fortalecer o processo educativo de elaboração da Carta da Terra a ser proclamada pelas
Nações Unidas em 2002. Atualmente o Instituto Paulo Freire coordena a “Rede Mundial pela Carta da Terra” que anima uma consulta mundial para sistematizar as contribuições à redação da Carta da Terra na perspectiva da educação.
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O conceito de cidadania, contudo, é ambíguo. Em 1789 a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão estabelecia as primeiras normas para assegurar a
liberdade individual e a propriedade. É uma concepção restrita de cidadania. Assim,
podem existir diversas concepções de cidadania: uma concepção liberal, neoliberal,
socialista democrática (o socialismo autoritário e burocrático não admite a democracia
como valor universal e desprezou a cidadania como valor). Existe hoje uma concepção consumista de cidadania sustentada na competitividade capitalista. Ela se restringe ao direito do cidadão de exigir a qualidade anunciada dos produtos que compra. Seria uma cidadania de mercado. Em oposição a essa concepção restrita existe uma concepção plena de cidadania. Ela não se limita aos direitos individuais. Ela se manifesta na mobilização da sociedade para a conquista/construção dos direitos acima mencionados, que devem ser garantidos pelo Estado. É uma cidadania que visa também à conquista e construção de novos direitos. O cidadão que é cumpridor das leis, paga impostos e escolhe seus representantes políticos está exercendo a cidadania. Mas a cidadania plena é mais exigente. Ela cria direitos, novos espaços de exercício da cidadania.
A concepção liberal e neoliberal de cidadania entende que a cidadania é apenas
um produto da solidariedade individual (da "gente de bem") entre as pessoas e não uma conquista e construção no interior do próprio Estado. A cidadania implica em instituições e regras justas. O Estado, numa visão democrática e solidária precisa exercer uma ação - para evitar, por exemplo, os abusos econômicos dos oligopólios – fazendo valer as regras definidas socialmente. Não basta conquistar o poder de Estado, é preciso ocupá-lo para que seja melhor qualificado para o exercício de suas funções, para torná-lo mais competente no atendimento ao cidadão.
Embora haja consenso em torno do valor da cidadania, ela é compreendida de
formas muito diferentes e até antagônicas. Como afirma Adela Cortina (op. cit.),
existem dimensões complementares da cidadania:
1)cidadania política: participação numa comunidade política;2)cidadania social: justiça como exigência ética (da sociedade de bem-estar à sociedade justa);
3)cidadania econômica: a empresa cidadã, ética e a transformação da economia:
os trabalhadores do saber, o terceiro setor (privado, porém, público);4)cidadania civil: a Sociedade Civil e a civilidade, civilização. Valores cívicos:liberdade, igualdade, respeito ativo, solidariedade, diálogo;5)cidadaniaintercultural: multiculturalidade,inter-culturalidade,transculturalidade. A interculturaldade como projeto ético e político (miséria doetnocentrismo). A questão da identidade. A noção de cidadania planetária (mundial) sustenta-se na visão unificadora do planeta e de uma sociedade mundial. Ela se manifesta em diferentes expressões: “nossa humanidade comum”, “unidade na diversidade”, “nosso futuro comum”, “nossa pátria comum”.
Cidadania Planetária é uma expressão adotada para expressar um conjunto de
princípios, valores, atitudes e comportamentos que demonstra uma nova percepção da
Terra como uma única comunidade (BOFF, 1995). Freqüentemente associada ao
“desenvolvimento sustentável”, ela é muito mais ampla do que essa relação com a
economia. Trata-se de um ponto de referência ético indissociável da civilização
planetária e da ecologia. A Terra é “Gaia” (LOVELOCK, 1987), um super-organismo
vivo e em evolução, o que for feito a ela repercutirá em todos os seus filhos.
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2. Processos e modelos de globalização
Há vários processos de globalização. Destacamos pelo menos dois deles:
1º O processo de globalização que estendeu um modelo de dominação
econômica, político e cultural totalitário e excludente: a globalização do modo de
produção capitalista. Nele, podemos distinguir países globalizadores e países
globalizados. Aqui, a globalização é essencialmente excludente e tem criado as
condições para um retrocesso brutal do ponto de vista dos direitos da maioria dos
cidadãos do mundo todo. Nesse processo, a economia de mercado tem favorecido as
disputas regionais através de blocos: o europeu, o asiático, o norte-americano ampliado e o latino-americano, retardando – ao invés de promover - uma real globalização. O mundo, do ponto de vista econômico, continua dividido. Agora dividido em blocos, em grandes interesses regionais.
2º O processo de globalização propiciado pelos avanços tecnológicos, que criam
as condições materiais (não ético-políticas) da cidadania global, a globalização da
Sociedade Civil. A globalização da Sociedade Civil possibilita novos movimentos
sociais, políticos e culturais intensificando a troca de experiências de suas particulares
maneiras de ser, questionando as desigualdades no interior dos Estados-Nação. A questão fundamental colocada por esses movimentos é a da reterritorialidade: uma
cidadania planetária que supere as nacionalidades (e sobretudos os nacionalismos), mas que, ao mesmo tempo, reconheça expectativas éticas, ecológicas, de gênero etc como constitutivas de um direito à institucionalidade como novos “Estados-Nação” (por isso fala-se, por exemplo, em “Nação negra”, “Nação indígena” etc). São novas
territorialidades que combinam os determinantes econômicos com os da etnicidade, de gênero etc. A cidadania nacional perde o seu território de origem e aparece uma
cidadania pluriterritorial. Este é o espaço (ciberespaço?) das ONGs e das estruturas
intergovernamentais que tomam fatias de poder cada vez maior do Estado-Nação. O desafio que se coloca a essas novas territorialidades é o de fortalecimento da
perspectiva democrática no seio da própria Sociedade Civil.
Muitos movimentos encontram formas de legitimação de seus atos no plano
internacional. Veja-se o exemplo do poderoso movimento ecológico Greenpeace. O Greenpeace faz campanhas de preservação da natureza em quase todo o mundo. A World Wild Life (WWF) é outro exemplo importante. Ela é uma das maiores
organizações em defesa da ecologia com 4,7 milhões de membros e atividades em mais de cem países. É maior do que algumas nações. Ainda para citar outro exemplo: o Earthwatch patrocina pesquisas científicas em mais de cem países, incluindo saúde,
arqueologia e sociologia.
Na visão do primeiro processo, centrado no modelo econômico-político neoliberal, a cidadania global já teria sido alcançada. É o que sustentam os globalistas.
Na visão do segundo processo, a cidadania global é considerada como um processo
lento de construção, inconcluso, na medida em que existem ainda muitos excluídos da
globalização. Diante do fenômeno da globalização não podemos nos comportar nem
como os apocalípticos, que vêem na globalização a fonte de todos os males atuais e nem como os integrados que vêem nela a salvação ou a condição final da realização plena do ser humano.
Ouvimos com freqüência que um dos objetivos dos projetos de informática nas
escolas dos governos é “educar para uma cidadania global”, numa sociedade
tecnologicamente desenvolvida, e que os novos Parâmetros Curriculares Nacionais
visam a adequar o currículo à globalização etc. Mas a que tipo de globalização se
referem? Não o mencionam, supondo que a globalização econômica é a única forma
possível de globalização. Não há dúvida de que, na visão mais corrente, o termo
“global” está muito mais ligado ao processo de globalização econômica do que ao
processo de globalização (solidariedade) da Sociedade Civil.
A Sociedade Civil mundial ou global está ainda em formação e “abrange uma
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grande variedade de sociedades contemporâneas, a leste e a oeste, pobres e ricas,
centrais e periféricas, desenvolvidas e subdesenvolvidas, dependentes e agregadas, o
conceito que se quiser usar. Apesar das diferenças existentes entre essas sociedades
quanto a seus níveis sociais, econômicos, políticos, tecnológicos, culturais, é possível
distinguir nelas estruturas, relações e processos semelhantes” (Maria Lúcia Azevedo
Leonardi, in CAVALCANTI, p. 195). Entre os traços característicos das sociedades
contemporâneas, Maria Lúcia Azevedo Leonardi (idem, p. 196-207) destaca: o
desenvolvimento tecnológico, a ocidentalização da cultura, a desterritorialização e o
declínio das metrópoles, o enfraquecimento dos Estados-nação, “elos das sociedade
global”, segundo Octavio Ianni (1992:96).
Diante da ambigüidade do termo “global”, preferimos falar de “cidadania
planetária” e não de “cidadania global”. Além do mais, desejamos realçar nosso
pertencimento ao planeta e não ao processo de globalização. O conceito de “cidadania
global” estaria muito mais ligado ao recente processo de globalização provocado pelos avanços tecnológicos, enquanto a planetaridade continua sendo um desejo, um sonho que vem de muito mais longe. A diferença é que hoje “dadas as ameaças que pesam sobre todos nós, a Terra ganhou uma nova centralidade” (BOFF, 1995:10).
A planetaridade está na raiz de muitas filosofias, religiões e movimentos sociais,
políticos e até lingüísticos:
1º A helenização e a romanização constituíram-se, a seu modo, num processo de
globalização: todos os homens, em todos os lugares, deveriam ser gregos ou romanos.
Não vamos citar aqui o milenarismo nazi-fascista para não gerar tanta polêmica em
torno do termo. O sonho autoritário tem se constituído sempre na busca de tornar
hegemônica uma certa visão de mundo, mesmo quando é totalmente inviável. Por
exemplo, estender o modo de vida americano aos chineses, tentando fazer com que cada um deles possuísse um carro, seria um desastre: os chineses esgotariam rapidamente as reservas de combustível do planeta. E mais: não sairiam do lugar!
2º No campo das religiões, a cidadania planetária sempre se constituiu num
pressuposto importante do movimento evangélico que, em tese, deveria reunir todos em defesa da vida, independentemente de fronteiras geográficas e sociais.
3º A ilustração também falava da mundialização como utopia, como
reconciliação universal de todos e da criação de um Estado mundial.
4º A literatura mundial está cheia de exemplos. Escreveu o autor de Os
miseráveis: “O futuro é um edifício misterioso que levantamos na Terra com as próprias mãos e que mais tarde deverá servir-nos a todos de moradia” (Vitor Hugo).
5º A cidadania planetária é um antigo sonho socialista (utópico). Há muito de
utopia, ainda hoje, no pensamento socialista diante da globalização capitalista
excludente. Na visão/realização socialista autoritária (foi essa face do socialismo que
fracassou, felizmente, e não o sonho socialista) predominou a imposição a uma visão de mundo a todos, restringindo-se o respeito às singularidades.
6º O movimento mundial pelo Esperanto, pelas suas características, constitui-se
na manifestação desse impulso de relacionar-se para além das fronteiras. O Esperanto
vem buscando essa aproximação planetária pela tentativa de superar a barreira
lingüística. Ele pretende ser a língua da cidadania planetária, mas as novas tecnologias
que possibilitaram a globalização, impuseram outra língua: o inglês. A língua inglesa e
o computador tornaram-se os instrumentos da nova cidadania global.
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O franceses preferem falar de “mundialização” em vem de globalização. De
fato, a agilização dos sistemas de comunicações que a telecomunicação e a informática
possibilitaram, foi realmente uma “mundialização”, inaugurando uma nova era, a da
informação (não ainda a era do conhecimento). Isso porque tornaram acessível às
empresas, instituições e indivíduos, um enorme volume de dados, imagens, sons
(multimídia) etc. possibilitando a comunicação em tempo real, independentemente das
distâncias.
A globalização está muito mais ligada ao fenômeno da mundialização do
mercado, que é um tipo de mundialização. E mesmo esta mundialização, fundada no
mercado, pode ser visa como uma globalização cooperativa ou como uma
globalização competitiva sem solidariedade. Entre o estatismo absolutista e a mão
invisível do mercado, pode existir (e existe) uma nova economia de mercado onde
predomina a cooperação e a solidariedade e não a competitividade selvagem, uma
“economia solidária” (SINGER, 1996), a verdadeira “economia da sustentabilidade”
(CAVALCANTI, 1998).
A globalização em si não é problemática, pois representa um processo de avanço
sem precedentes na história da humanidade. O que é problemático é a globalização
competitiva onde os interesses do mercado se sobrepõem aos interesses humanos, onde
os interesses dos povos se subordinam aos interesses corporativos das grandes empresas
transnacionais.
Assim, podemos distinguir uma globalização competitiva de uma possível
globalização cooperativa e solidária. A primeira está subordinada apenas às leis do
mercado e a segunda subordina-se aos valores éticos e à espiritualidade humana. O
movimento ético pela Carta da Terra tem-se distinguido pela busca de uma
globalização/planetarização solidária.
A cidadania planetária supõe o reconhecimento e a prática da planetaridade,
isto é, tratar o planeta como um ser vivo e inteligente. Como diz Francisco Gutiérrez, “a
planetaridade deve levar-nos a sentir e viver nossa cotidianidade em relação harmônica
com os outros seres do planeta Terra” (GUTIÉRREZ, 13).
3. Cidadania planetária ou global?
Como se situa o movimento ecológico diante desse tema? É importante notar,
como o fez Alícia Bárcena, que “a formação de uma cidadania ambiental é um
componente estratégico do processo de construção da democracia”. Para ela, a
cidadania ambiental é verdadeiramente planetária pois no movimento ecológico, o local
e o global se interligam. A derrubada da floresta amazônica não é apenas um fato local:
é um atentato contra a cidadania planetária.
O ecologismo tem muitos e reconhecidos méritos na colocação do tema da
planetaridade. Foi pioneiro na extensão do conceito de cidadania no contexto da
globalização e também na prática de uma cidadania global de tal modo que hoje
cidadania global e ecologismo fazem parte do mesmo campo de ação social, do mesmo
campo de aspirações e sensibilidades. Porém, a cidadania planetária não pode ser apenas
ambiental já que existem agências de caráter global com políticas ambientais que
sustentam a globalização capitalista. Uma coisa é ser “cidadão da terra” e outra é ser
“capitalista da terra”. A construção de uma cidadania planetária tem ainda um longo
caminho a percorrer no interior da globalização capitalista.
A cidadania planetária deverá ter como foco a superação da desigualdade, a
eliminação das sangrentas diferenças econômicas e a integração da diversidade cultural
da humanidade e a eliminação das diferenças econômicas.
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Não se pode falar em cidadania planetária ou global sem uma efetiva cidadania
na esfera local e nacional. Uma cidadania planetária é por essência uma cidadania
integral, portanto, uma cidadania ativa e plena não apenas nos direitos sociais,
políticos, culturais e institucionais, mas também econômico-financeiros.
A cidadania planetária implica também na existência de uma democracia
planetária. Portanto, ao contrário do que sustentam os neoliberais, estamos muito longe
de uma efetiva cidadania planetária. Ela ainda permanece como projeto humano,
inalcançável se for limitada apenas ao desenvolvimento tecnológico. Ela precisa fazer
parte do próprio projeto da humanidade como um todo. Ela não será uma mera
conseqüência ou um sub-produto da tecnologia ou da globalização econômica.
4. Educar para a cidadania planetária
Antes de mais nada seria necessário definir o que significa educar. Para nós,
educar é impregnar de sentido as práticas, os atos cotidianos. Portanto, a competência
do educador tem uma dimensão ética, pela própria natureza do seu quefazer. A ética
não é mais uma coisa, um conteúdo, uma disciplina, um conhecimento que se deve
acrescentar ao quefazer educativo. É sua própria essência. “Meu novo paradigma é a
Terra vista pelos astronautas. Os homens vistos em uma única comunidade” tem
afirmado Leonardo Boff. Perguntaram a ele se, assumindo esse novo paradigma, ele não
estaria abandonando o da causa dos pobres – Teologia da Libertação. No livro
Ecologia, Grito da Terra, Grito dos Pobres ele responde a essa pergunta, afirmando que
a causa de fundo da Ecologia e da Teologia da Libertação é a mesma: a lógica que
explora as classes sociais - que cria pobres e oprimidos - é a mesma que explora a
natureza e exaure seus recursos. A opção pelos pobres é a opção pela Terra, que é o
grande pobre.
Educar para a cidadania planetária supõe o reconhecimento de uma comunidade
global, de uma Sociedade Civil planetária. As exigências da sociedade planetária devem
ser trabalhadas pedagogicamente a partir da vida cotidiana, a partir das necessidades e
interesses das pessoas. Para Francisco Gutiérrez, educar para a cidadania planetária
supõe o desenvolvimento de novas capacidades, tais como:
1) “sentir, intuir, vibrar emocionalmente (emocionar)
2) imaginar, inventar, criar e recriar
3) relacionar e inter-conectar-se, auto-organizar-se
4) informar-se, comunicar-se, expressar-se
5) localizar, processar e utilizar a imensa informação da ‘aldeia global’
6) buscar causas e prever conseqüências
7) criticar, avaliar, sistematizar e tomar decisões
8) pensar em totalidade (holisticamente)” (GUTIÉRREZ, 1997:41).
Uma educação para a cidadania planetária deveria nos levar à construção de uma
cultura da sustentabilidade, isto é, uma biocultura, uma cultura da vida, da
convivência harmônica entre os seres humanos e entre estes e a natureza (equilíbrio
dinâmico). Paulo Freire nos falava de uma “racionalidade molhada de emoção”. Morin
nos fala de uma “lógica do vivente” contra a “racionalidade instrumental” evidenciada
por Habermas. “A cultura da sustentabilidade deve nos levar a saber selecionar o que é
realmente sustentável em nossas vidas, em contato com a vida dos outros. Só assim
seremos cúmplices nos processos de promoção da vida. Criar vida é portanto criar a
cultura da sustentabilidade” (GUTIÉRREZ, 1997:76).
4.1 A ecopedagogia
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É nesse contexto que se está falando em “ecopedagogia” (Francisco Gutiérrez) e
“ecoformação” (Gaston Pineau).
O desenvolvimento sustentável tem um componente educativo formidável: a
preservação do meio ambiente depende de uma consciência ecológica e a formação da
consciência depende da educação. Nesse contexto, a ecopedagogia pode ser vista tanto
como
1)movimento pedagógico (como a ecologia) quanto como
2)abordagem curricular (reorientação dos currículos, PCNs, sistemas de ensino,
escola cidadã, pedagogia da práxis) e como
3)teoria e prática educacional. Sem uma ação pedagógica efetiva, de nada
adiantarão os grandes projetos de despoluição ou de preservação do meio
ambiente.
A ecopedagogia não é uma pedagogia escolar. A escola pode contribuir muito
mas a ecopedagogia pretende ir além da escola: ela pretende impregnar toda a sociedade
(educação formal e não-formal), tanto no ambiente de trabalho quanto no ambiente
doméstico. A ecopedagogia e a cultura da sustentabilidade deverão tornar-se temas de
debate muito importantes nas próximas décadas.
A ecopedagogia é uma pedagogia para a promoção da aprendizagem do
sentido das coisas a partir da vida cotidiana. Encontramos o sentido ao caminhar,
vivenciando o processo de abrir novos caminhos, e não apenas observando o caminho.
É, por isso, uma pedagogia democrática e solidária.
O que significa promover?
Ainda segundo Francisco Gutiérrez, que cunhou a palavra “ecopedagogia” no
início dos anos 90, promover é “facilitar, acompanhar, possibilitar, recuperar, dar lugar,
compartilhar, inquietar, problematizar, relacionar, reconhecer, envolver, comunicar,
expressar, comprometer, entusiasmar, apaixonar, amar” (GUTIÉRREZ, 1997:36).
O que significa caminhar com sentido?
Na “educação bancária”(Paulo Freire), não se discute o sentido da
aprendizagem, pois, para essa educação, aprender é um fim em si mesmo. A
ecopedagogia teve origem na “educação problematizadora” (Paulo Freire), que se
pergunta sobre o sentido da própria aprendizagem. Para Francisco Gutiérrez, “caminhar
com sentido significa, antes de mais nada, dar sentido ao que fazemos, compartilhar
sentidos, impregnar de sentido as práticas da vida cotidiana e compreender o sem
sentido de muitas outras práticas que aberta ou solapadamente tratam de impor-se”
(GUTIÉRREZ, 1997:39).
4.2 A ecoformação
Foi explorando a problemática da autoformação que Gaston Pineau criou o
neologismo “ecoformação” nos anos 80, relacionado-o às histórias de vida das pessoas.
Experiências cotidianas aparentemente insignificantes - como uma corrente de ar, um
sopro de respiração, a água da manhã na face – fundamentam as relações com si próprio
e com o mundo. A tomada de consciência dessa realidade é profundamente formadora.
O meio ambiente forma tanto quanto ele é formado ou deformado.
Nascida na pesquisa em educação permanente, a ecoformação se alimenta do
paradigma ecológico, interrogando-se sobre as relações entre o ser humano e o mundo.
Nós dependemos dos elementos naturais – o ar, a água, a terra e o fogo (Gaston
Bachelard) - mais do que estes dependem de nós, afirma Pineau. E acrescenta: no
entanto, no nosso desejo de dominá-los, eles desaparecerem do nosso campo de
consciência. A relação que nos liga a eles é uma relação de uso.
A ecoformação pretende estabelecer um equilíbrio harmônico entre o
homem/mulher e o meio ambiente. Ela se inscreve no conceito mais amplo de formação
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tripolar já anunciada por Rousseau (PINEAU, 1992:246-247): os outros, as coisas e a
nossa natureza pessoal. São três modelos formativos que participam do nosso
desenvolvimento ao longo de toda a vida - nossos mestres segundo Rousseau: a
heteroformação (amplamente dominante), a auformação (em vias de desenvolvimento) e
a ecoformação (ainda engatinhando).
5. Desafios da cidadania planetária
De toda maneira, diante deste cenário incerto, podemos apostar que a
mundialização é mais provável do que a fragmentação, pois ela se configura como a
tendência mais forte. Mas continua sendo a mesma aposta de tantos do passado. A
diferença é que agora ela está sendo possibilitada pela tecnologia, embora acessível
ainda a muito poucos. “A história é possibilidade e não fatalidade”, costumava nos dizer
Paulo Freire.
À primeira vista parece que hoje a cidadania, a tecnologia e a globalização estão
caminhando juntas. Contudo, precisamos distinguí-las, analisando seus limites e
possibilidades. Daí a nossa preocupação pedagógica em colocar aqui algumas questões
finais para a reflexão:
1ª Como construir uma cidadania planetária num país globalizado onde sequer
foi ainda construída a cidadania nacional? Essa não é apenas uma pergunta que deve
ser dirigida aos educadores, mas também aos políticos, aos comunicadores etc. Que
garantias teremos de que a Carta da Terra seja cumprida se ainda não foi cumprida a
Carta dos “Direitos Humanos”?
2ª Como fica a identidade diante da ocidentalização da cultura promovida pela
mídia e do domínio da língua inglesa na Internet (65% de inglês frente a 0,5% de
português)? A riqueza da humanidade é principalmente a sua diversidade. Se
entendermos por humanidade a diversidade, não estaríamos caminhando para a morte
intelectual da própria humanidade, provocada pela unificação da cultura e pela
mestiçagem?
3ª Estaremos gestando uma “cultura global”, esmagando todas as culturas
“particulares” e “locais”? Quais seriam as conseqüências desse processo de “unificação”
das culturas? Não é o mesmo processo de mundialização de uma cultura
particular/local? Essa gestação não estaria, por sua vez, possibilitando o crescimento do
fundamentalismo (religioso ou laico), acirrando as resistências comunitárias aos valores
culturais universalizantes? Certas culturas locais estão reforçando seus traços nos
levando a crer que o mundo continua fragmentado e não globalizado. O que está se
universalizando? Padrões de consumo e de produção?
4ª Como nos lembra a Carta da Terra de Cuba, aprovada em setembro de 1998, o
capitalismo promove o consumismo e é contrário em sua essência à proteção do meio
ambiente. O neoliberalismo procura destruir a comunidade para construir o indivíduo. A
cidadania planetária está fundada em valores universais consensuados, num mundo
justo, produtivo e num ambiente saudável. Que consensos podem ser construídos sob a
hegemonia capitalista? Ao mesmo tempo em que escrevemos os consensos, precisamos
inscrevê-los, ética e socialmente, na convivência social, como os consensos das nações
indígenas, inscritos na sua cultura, sem serem escritos.
5ª Devemos criticar o “desenvolvimento sustentável” porque é uma contradição
em si? As noções de desenvolvimento e de sustentabilidade seriam antagônicas? O
desenvolvimento sustentável é uma “armadilha do ecocapitalismo”, afirma Leonardo
Boff? Devemos criticar toda forma de desenvolvimento ou apenas a forma capitalista de
desenvolvimento? Francisco Gutiérrez coloca como condições do desenvolvimento
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sustentável: ser economicamente factível; ser ecologicamente apropriado; ser
socialmente justo; e ser culturalmente eqüitativo, respeitoso e sem discriminação de
gênero.
6ª Como seria uma “civilização da simplicidade” (Gorostiaga), da qualidade de
vida, da sustentabilidade, da igualdade e da alegria compartida?
É importante que a discussão continue em todos os espaços possíveis para que os
direitos da cidadania planetária sejam conquistados e mantidos. O Instituto Paulo Freire
vem fazendo essa discussão através de encontros e seminários e está organizando uma
Conferência Mundial sobre a “Carta da Terra na Perspectiva da Educação”, com o
objetivo de socializar as contribuições à redação da Carta da Terra, dos educadores em
todo o mundo e estimular a criação de uma rede mundial de educadores pela Carta da
Terra, com espaços de registros e divulgação de processos consolidados e experiências.
Essa é uma iniciativa, entre tantas, que busca garantir o que foi sustentado na Rio-92:
“A Terra é uma só nação e os seres humanos, seus cidadãos”.
“Um dia a vida surgiu na terra.
A terra tinha com a vida um cordão umbilical.
A vida e a terra.
A terra era grande e a vida pequena. Inicial.
A vida foi crescendo e a terra foi ficando menor, não pequena.
Cercada, a terra virou coisa de alguém, não de todos, não comum.
Virou sorte de alguns e desgraça de tantos.
Na história foi tema de revoltas, revoluções, transformações.
A terra e a cerca. A terra e o grande proprietário.
A terra e o sem terra.
E a morte”.
Herbert de Souza
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