Samuel Huntington
O choque das civilizações?
A política mundial está a entrar numa nova fase e os intelectuais não têm hesitado em multiplicar as visões do que esta seria — o fim da história, o regresso às tradicionais rivalidades entre Estados-nações e o declínio do Estado-nação a partir das tendências em conflito do tribalismo e do globalismo, entre outras. Cada uma destas visões capta aspectos da realidade emergente. No entanto, todas elas esquecem um aspecto crucial, mesmo central, do que, provavelmente, a política global pode vir a ser nos anos vindouros.
A minha hipótese é a de que a fonte fundamental de conflito neste novo mundo não seja prevalentemente ideológica ou predominantemente económica. As grandes divisões existentes na humanidade e a fonte dominante de conflito serão culturais. Os Estados-nações continuarão a ser os actores mais poderosos nas questões mundiais, mas os principais conflitos da política global ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As guerras civilizacionais serão as batalhas do futuro.
O conflito entre civilizações será a última fase na evolução do conflito no mundo moderno. Durante um século e meio, após a emergência do moderno sistema internacional com a Paz de Vestefália, os conflitos do mundo moderno ocorreram maioritariamente entre príncipes — imperadores, monarcas absolutos e monarcas constitucionais, que tentavam expandir as suas burocracias, os seus exércitos, o seu poder económico mercantilista e, principalmente, o território que governavam. Neste processo criaram os Estados-nações, mas com a revolução francesa as principais linhas de conflito começaram a verificar-se mais entre nações do que entre príncipes. Em 1793 R. R. Palmer dizia que «as guerras entre reis acabaram; começaram as guerras entre povos». Este padrão do século xix durou até ao fim da primeira guerra mundial. Depois, como resultado da revolução russa e da reacção contra ela, o conflito das nações conduziu ao conflito das ideologias, primeiro entre o comunismo, o nazi-fascismo e a democracia liberal e depois entre o comunismo e a democracia liberal. Durante a guerra fria, este último conflito foi corporizado na luta entre as duas superpotências, nenhuma delas um Estado-nação no sentido clássico europeu do termo, mas cada uma delas com as suas identidades definidas em termos das respectivas ideologias.
Estes conflitos entre príncipes, Estados-nações e ideologias ocorreram predominantemente dentro da civilização ocidental, «guerras civis ocidentais», como William Lind os classificou. Tal foi tanto verdade em relação à guerra fria como o foi em relação às antecedentes guerras dos séculos xvii, xviii e xix. Com o fim da guerra fria, a política internacional sai da fase ocidental e o seu centro passa a ser a interacção entre o Ocidente e as civilizações não ocidentais e entre estas. Na política das civilizações, os povos e os governos das civilizações não ocidentais já não são mais os objectos da história como alvos do colonialismo ocidental, mas juntam-se ao Ocidente como motores e modeladores da história.
A natureza das civilizações
Durante a guerra fria, o mundo estava dividido em primeiro, segundo e terceiro mundos. Estas divisões já não têm qualquer relevância. É agora muito mais significativo agrupar os países, não em termos dos seus sistemas políticos ou económicos ou dos seus níveis de desenvolvimento económico, mas segundo a sua cultura e civilização.
O que queremos dizer quando falamos de uma civilização? Uma civilização é uma entidade cultural. Aldeias, regiões, grupos étnicos, nacionalidades, grupos religiosos, todos têm culturas distintas em diferentes níveis de heterogeneidade cultural. A cultura de uma aldeia na Itália meridional pode ser diferente da de uma aldeia no Norte, mas ambas compartilham uma cultura italiana comum que as distingue das aldeias alemãs. As comunidades europeias, por seu lado, partilharão traços culturais que as distinguem das comunidades árabes ou chinesas. No entanto, os Árabes, os Chi-neses e os Ocidentais não são parte de qualquer entidade cultural mais ampla. Constituem civilizações. Assim, a civilização é o mais elevado agrupamento cultural de pessoas e o nível mais amplo de identidade cultural que possuem e que distingue os humanos das outras espécies. Define--se quer por elementos objectivos comuns, como a língua, a história, a religião, os costumes e as instituições, quer pela auto-identificação subjectiva das pessoas. As pessoas têm níveis de identidade diferentes: um residente em Roma pode definir-se, em vários graus de intensidade, como romano, italiano, católico, cristão, europeu, ocidental. A civilização a que pertence é o nível mais amplo de identificação a que se sente ligado. As pessoas podem redefinir, e redefinem, as suas identidades e, consequentemente, mudam a composição e as fronteiras das civilizações.
As civilizações podem englobar uma grande quantidade de pessoas, como a da China («uma civilização que pretende ser um Estado», como disse Lucian Pye), ou um número muito reduzido de pessoas, como a das Caraíbas anglófonas. Uma civilização pode incluir vários Estados-nações, como é o caso das civilizações ocidental, latino-americana ou árabe, ou apenas um, como acontece com a civilização japonesa. Obviamente, as civilizações misturam-se e sobrepõem-se e podem conter subdivisões. A civilização ocidental tem duas variantes principais, a europeia e a norte-americana, tal como o islão tem várias subdivisões: árabe, turca e malaia. No entanto, as civilizações são entidades com significado e, embora as linhas entre elas não sejam nítidas, são reais. As civilizações são dinâmicas, progridem e tombam, dividem-se e fundem-se. E, como qualquer estudante de História sabe, há civilizações que desaparecem e ficam enterradas nas areias do tempo.
Os Ocidentais tendem a considerar que os Estados-nações são os principais actores nos assuntos globais. De facto, têm-no sido, mas apenas há alguns séculos. A história das civilizações tem sido a história humana com maior alcance. No livro A Study of History Arnold Toynbee identificou 21 grandes civilizações; apenas seis continuam a existir no mundo contemporâneo.
Por que haverá choques de civilizações
No futuro, a identidade civilizacional será cada vez mais importante e o mundo será moldado, em grande medida, pelas interacções entre sete ou oito grandes civilizações. Nestas incluem-se a ocidental, a confucionista, a japonesa, a islâmica, a hindu, a eslavo-ortodoxa, a latino-americana e, possivelmente, a africana. Os conflitos mais importantes do futuro ocorrerão ao longo das linhas que separam estas civilizações umas das outras.
Por que será assim?
Em primeiro lugar, as diferenças entre as civilizações não são apenas reais, são básicas. As civilizações distinguem-se umas das outras pela história, língua, cultura, tradição e, especialmente, pela religião. Pessoas de civilizações diferentes têm pontos de vista diferentes sobre as relações entre Deus e o homem, o indivíduo e o grupo, o cidadão e o Estado, os pais e os filhos, o marido e a mulher, assim como perspectivas diferentes sobre a importância relativa dos direitos e das responsabilidades, a liberdade e a autoridade, a igualdade e a hierarquia. Estas diferenças são o produto do trabalho de séculos. Não desaparecerão brevemente. São bem mais importantes do que as diferenças entre ideologias políticas e regimes políticos. As diferenças não significam, necessariamente, conflitos, tal como estes não significam, necessariamente, violência. No entanto, ao longo dos séculos, as diferenças entre civilizações têm gerado os conflitos mais prolongados e mais violentos.
Em segundo lugar, o mundo está a transformar-se num lugar mais pequeno. As interacções entre povos de civilizações diferentes estão a aumentar; estas interacções crescentes intensificam a consciência civilizacional e a constatação das diferenças entre as civilizações e das similitudes existentes dentro delas. A imigração norte-africana em França gera hostilidade entre os Franceses enquanto, simultaneamente, aumenta a receptividade à imigração dos «bons» polacos católicos europeus. Os Americanos reagem bastante mais negativamente ao investimento japonês do que aos muito maiores investimentos do Canadá e dos países europeus. Analogamente, como notou Donald Horowitz, «um ibo pode ser [...] um ibo owerri ou um ibo onitsha na região leste da Nigéria. Em Lagos é, simplesmente, ibo. Em Londres é nigeriano. Em Nova Iorque é africano.» As interacções entre povos de civilizações diferentes fazem aumentar a consciência civilizacional das pessoas e, por outro lado, acentuam as diferenças e as animosidades que estão radicadas, ou assim se pensa, bem fundo na história.
Em terceiro lugar, os processos de modernização económica e de mudança social através do mundo estão a afastar as pessoas das ancestrais identidades locais. Também enfraquecem o Estado-nação como fonte de identidade. Em muitas partes do mundo a religião tem procurado preencher esse vazio, frequentemente sob a forma de movimentos que são etiquetados de «fundamentalistas». Tais movimentos encontram-se no cristianismo ocidental, no judaísmo, no budismo e no hinduísmo, assim como no islamismo. Na maior parte dos países e das religiões as pessoas activas nestes movimentos fundamentalistas são jovens, educadas, técnicos de classe média, profissionais e homens de negócios. A «dessecularização do mundo», apontou George Weigel, «é um dos factos sociais dominantes de finais do século xx». O renascimento da religião, «la revanche de Dieu», como Gilles Kepel o intitulou, fornece uma base para a identidade e para o empenhamento que transcende as fronteiras nacionais e une as civilizações.
Em quarto lugar, o crescimento da consciência civilizacional é aumentado pelo duplo papel do Ocidente. Por um lado, o Ocidente está no auge do poder. No entanto, ao mesmo tempo e talvez como resultado disso, está a ocorrer um fenómeno de retorno às origens entre as civilizações não ocidentais. Ouvem-se cada vez mais referências a tendências em direcção a uma viragem para dentro e à «asianização» no Japão, ao fim do legado de Nehru e à «hinduização» da Índia, ao fracasso das ideias do socialismo e do nacionalismo ocidentais e, consequentemente, à «reislamização» do Médio Oriente e, agora, a um debate sobre a ocidentalização versus russianização no país de Boris Ieltsine. Um Ocidente no auge do seu poder confronta-se com um poder não ocidental que, crescentemente, tem desejo, vontade e recursos para moldar o mundo em modos não ocidentais.
No passado, as elites de sociedades não ocidentais eram, normalmente, as pessoas que mais estavam envolvidas com o Ocidente, tinham sido educadas em Oxford, na Sorbona ou em Sandhurst e tinham absorvido as atitudes e os valores ocidentais. Ao mesmo tempo, a populaça nos países não ocidentais frequentemente permanecia profundamente imbuída da cultura indígena. Todavia, actualmente, estas relações estão a ser invertidas. Está a ocorrer uma desocidentalização e uma indigenização das elites em muitos países não ocidentais ao mesmo tempo que a cultura, os estilos e os hábitos ocidentais, principalmente americanos, se tornam mais populares entre as massas.
Em quinto lugar, as características e as diferenças culturais são menos mutáveis e, consequentemente, menos facilmente comprometidas e transformadas do que as políticas e económicas. Na antiga União Soviética os comunistas podem tornar-se democratas, os ricos podem tornar-se pobres e os pobres ricos, mas os Russos não podem tornar-se estonianos e os Aze-ris não podem tornar-se arménios. A questão principal nos conflitos ideológicos e de classe consistia em «de que lado estás?» e as pessoas podiam escolher, e escolhiam, o lado e mudavam depois de campo. Nos conflitos entre civilizações a questão que se coloca pretende saber «o que é és?» Refere-se a um dado que não pode ser alterado. E, como todos sabem, da Bósnia ao Cáucaso e ao Sudão, uma resposta errada a esta pergunta pode significar uma bala na cabeça. Ainda mais do que a etnia, a religião discrimina vincadamente as pessoas. Um indivíduo pode ser meio-francês e meio-árabe e, simultaneamente, até cidadão dos dois países. É mais difícil ser meio-católico e meio-muçulmano.
Finalmente, o regionalismo económico está a aumentar. As percentagens em relação ao total do comércio intrar-regional subiram, entre 1980 e 1989, de 51% para 59% na Europa, de 33% para 37% no Extremo Oriente e de 32% para 36% na América do Norte. É provável que a importância dos blocos económicos regionais continue a aumentar no futuro. Por um lado, o regionalismo económico reforçará a consciência civilizacional. Por outro, o regionalismo económico só pode ter sucesso quando estiver radicado numa civilização comum. A Comunidade Europeia assenta numa criação partilhada da cultura europeia e do cristianismo ocidental. O sucesso da Área de Comércio Livre Norte-Americano* depende da convergência em curso das culturas mexicana, canadiana e americana. Em contrapartida, o Japão enfrenta dificuldades na criação de uma entidade económica comparável no Extremo Oriente porque o Japão é, em si mesmo, uma sociedade e uma civilização únicas. Por muito forte que seja o comércio e o investimento que o Japão possa desenvolver com outros países da Ásia oriental, as diferenças culturais com esses países inibem e talvez excluam a promoção da integração económica regional, como acontece na Europa e na América do Norte.
Pelo contrário, uma cultura comum está a facilitar claramente a rápida expansão das relações económicas entre a República Popular da China, Hong-Kong, Taiwan, Singapura e as comunidades de chineses ultramarinos em vários outros países da Ásia. Finda a guerra fria, as similitudes culturais ultrapassaram crescentemente as diferenças ideológicas e a China continental e Taiwan aproximaram-se mutuamente. Se a comunhão cultural for um pré-requisito para a integração económica, o principal bloco económico do futuro no Extremo Oriente ficará, provavelmente, centrado na China. De facto, este bloco já existe. Como observou Murray Weidenbaum:
Apesar do actual domínio japonês na região, a economia de base chinesa na Ásia está a emergir rapidamente como um novo epicentro para a indústria, o comércio e a finança. Esta área estratégica contém uma quantidade substancial de tecnologia e de capacidade manufactureira (Taiwan), excelente espírito empresarial e o expoente máximo no que toca a marketing e serviços (Hong--Kong), uma rede óptima de comunicações, uma tremenda pool de capital financeiro (os três) e um enorme dote de terra, de recursos e de trabalho (China continental) [...] De Guangzou a Singapura, de Kuala Lumpur a Manila, esta influente rede — frequentemente baseada em extensões dos clãs tradicionais — tem sido descrita como a espinha dorsal da economia da Ásia oriental1.
A cultura e a religião formam também a base da Organização de Cooperação Económica, que reúne dez países muçulmanos não árabes: Irão, Paquistão, Turquia, Azerbaijão, Cazaquistão, Quirguistão, Turcomenistão, Tajiquistão, Usbequistão e Afganistão. O ímpeto para o renascimento e expansão desta organização, fundada inicialmente pela Turquia, Paquistão e Irão nos anos 60, deriva da percepção dos dirigentes políticos de vários destes países de que não têm grandes hipóteses de penetração na Comunidade Europeia. Analogamente, o Caricom, o mercado comum da América Central, e o Mercosul assentam em bases culturais comuns. No entanto, até à data os esforços feitos para construir uma entidade económica mais ampla que abranja as Caraíbas e a América Central, ultrapassando a divisão anglo-latina, têm falhado.
Como as pessoas definem a sua identidade em termos étnicos e religiosos, é provável que vejam que existe um «nós» versus «eles» em relação a povos de uma etnia ou religião diferentes. O fim de Estados ideologicamente definidos na Europa de Leste e na antiga União Soviética permite que identidades e animosidades étnicas tradicionais venham ao de cima. Diferenças na cultura e na religião criam diferenças sobre questões de política, que vão dos direitos humanos à imigração e do comércio ao ambiente. A proximidade geográfica origina reivindicações conflituais de território desde a Bósnia até Mindanau. Mas, acima de tudo, os esforços do Ocidente para promover como valores universais os seus valores de democracia e de liberalismo, para manter a sua predominância militar e para colocar à frente os seus interesses económicos originam contra-respostas das outras civilizações. Os governos e os grupos, cada vez menos capazes de mobilizarem apoio e de formarem coligações na base da ideologia, tentam mobilizar progressivamente o apoio apelando à religião comum e à identidade civilizacional.
O choque das civilizações ocorrerá, assim, em dois níveis: ao nível micro, grupos adjacentes que vivem ao longo das linhas divisórias das civilizações lutam entre si, frequentemente com violência, pelo controle do território; ao nível macro, os Estados de civilizações diferentes entram em competição pelo poder militar e económico, lutam pelo controle de instituições internacionais e de terceiras partes e, em concorrência, promovem os seus valores políticos e religiosos específicos.
As linhas divisórias entre civilizações
As linhas divisórias entre civilizações estão a substituir as fronteiras políticas e ideológicas da guerra fria como pontos quentes para crises e para o derramamento de sangue. A guerra fria começou quando a cortina de ferro dividiu política e ideologicamente a Europa. A guerra fria terminou com o fim da cortina de ferro. Quando desapareceu a divisão ideológica da Europa, reapareceu a divisão cultural da Europa entre o cristianismo ocidental, por um lado, e o cristianismo ortodoxo e o islamismo, por outro. A linha divisória mais significativa na Europa, como sugeriu William Wallace, pode bem ser a fronteira oriental do cristianismo ocidental de 1500. Esta linha segue ao longo das actuais fronteiras entre a Finlândia e a Rússia e entre os Estados bálticos e a Rússia, passa pela Bielorrúsia e pela Ucrânia, separando os católicos da Ucrânia Ocidental dos ortodoxos da Ucrânia Oriental, curva para ocidente, separando a Transilvânia do resto da Roménia, e continua através da Jugoslávia, quase exactamente ao longo da linha que separa, actualmente, a Croácia e a Eslovénia do resto da Jugoslávia. Nos Balcãs, claro está, esta linha coincide com a fronteira histórica entre o império habsburgo e o otomano. A norte e a ocidente desta linha, os povos são protestantes ou católicos, partilham experiências comuns da história europeia — feudalismo, Renascimento, Reforma, as luzes, a revolução francesa, a revolução industrial; em geral, estão economicamente melhor do que os povos a leste, parecendo agora esperar ansiosamente por um maior envolvimento numa economia europeia comum e pela consolidação dos sistemas políticos democráticos. A oriente e a sul desta linha, os povos são ortodoxos ou muçulmanos; historicamente, pertenciam ao império otomano ou ao czarista e apenas levemente eram tocados pelos acontecimentos modeladores do resto da Europa; são, regra geral, economicamente menos avançados; parece muito menos provável que desenvolvam sistemas políticos democraticamente estáveis. A cortina de veludo da cultura substituiu a cortina de ferro da ideologia como a mais significativa linha divisória na Europa. Como mostram os acontecimentos na Jugoslávia, não é apenas uma linha de diferença, é também uma linha de conflito sangrento.
O conflito ao longo das linhas de separação entre as civilizações ocidental e islâmica tem prosseguido desde há 1300 anos. Depois da criação do islão as vagas árabe e moura para ocidente e para norte só terminaram em 732 em Tours. Entre os séculos xi e xiii os cruzados tentaram, com um sucesso temporário, trazer de volta o cristianismo e a lei cristã à Terra Santa. Entre os séculos xiv e xvii, os Turcos Otomanos inverteram a relação de forças, estenderam o seu domínio sobre o Médio Oriente e os Balcãs, conquistaram Constantinopla e, por duas vezes, cercaram Viena. No século xix e em princípios do século xx, enquanto o poder otomano declinava, a Grã-Bretanha, a França e a Itália estabeleceram o controle ocidental sobre a maior parte do Norte de África e o Médio Oriente.
Depois da segunda guerra mundial, o Ocidente, por sua vez, começou a recuar; os impérios coloniais desapareceram; irrompeu, primeiro, o nacionalismo árabe e, depois, o fundamentalismo islâmico; o Ocidente tornou-se fortemente dependente dos países do golfo Pérsico por causa da sua energia; os países muçulmanos ricos em petróleo tornaram-se ricos em dinheiro e, posteriormente, ricos em armamento. Ocorreram várias guerras entre Árabes e Israel (criação do Ocidente). A França travou uma guerra sangrenta e cruel na Argélia durante grande parte dos anos 50; forças britânicas e francesas invadiram o Egipto em 1956; forças americanas entraram no Líbano em 1958; posteriormente, forças americanas voltaram ao Líbano, atacaram a Líbia e empenharam-se em vários confrontos militares com o Irão; terroristas árabes e islâmicos, apoiados, pelo menos, por três governos do Médio Oriente, empregaram a arma dos fracos e fizeram explodir aviões e instalações ocidentais e sequestraram reféns ocidentais. Esta guerra entre Árabes e o Ocidente culminou quando, em 1990, os Estados Unidos enviaram um poderoso exército ao golfo Pérsico para defender alguns países árabes da agressão de um outro. Como resultado, o planeamento da NATO está cada vez mais dirigido para potenciais ameaças e instabilidade ao longo do seu «flanco sul».
É pouco provável que esta interacção militar de séculos entre o Ocidente e o islão diminua. Pode tornar-se mais virulenta. A guerra do Golfo deixou alguns árabes orgulhosos por Saddam Hussein ter atacado Israel e afrontado o Ocidente. Também deixou muitos humilhados e ressentidos devido à presença militar do Ocidente no golfo Pérsico, ao esmagador do-mínio militar do Ocidente e à sua aparente incapacidade para modelarem o seu próprio destino. Muitos países árabes, juntamente com os exportadores de petróleo, estão a atingir níveis de desenvolvimento económico e social em que as formas autocráticas de governo se tornam inapropriadas e os esforços para introduzir a democracia são cada vez mais fortes. Já se verificaram algumas aberturas em certos sistemas políticos árabes. Os principais beneficiários destas aberturas têm sido os movimentos islâmicos. Em resumo, no mundo árabe a democracia ocidental fortalece as forças políticas antiocidentais. Este fenómeno pode ser passageiro, mas, seguramente, complica as relações entre os países islâmicos e o Ocidente.
Estas relações são também complicadas pela demografia. O espectacular crescimento populacional nos países árabes, principalmente no Norte de África, conduziu a uma crescente migração para a Europa ocidental. As alterações dentro da Europa central em direcção ao esbatimento das fronteiras internas têm aguçado as sensibilidades políticas no que respeita a este desenvolvimento. Na Itália, na França e na Alemanha o racismo está a crescer abertamente e as reacções políticas e a violência contra os imigrantes árabes e turcos têm-se tornado mais intensas e disseminadas desde 1990.
A interacção entre o islão e o Ocidente tem sido vista por ambas as partes como um choque de civilizações. A «próxima confrontação» do Ocidente, observa M. J. Akbar, escritor muçulmano indiano, «está a caminhar claramente para que tenha origem no mundo muçulmano. É no espaço das nações islâmicas, do Magrebe ao Paquistão, que a luta por uma nova ordem mundial começará.» Bernard Lewis chega a uma conclusão semelhante:
Estamos perante um estado de espírito e um movimento que transcende em muito o nível de questões e de políticas e os governos que as prosseguem. Nada menos do que um choque de civilizações — a reacção talvez irracional, mas seguramente histórica, de uma antiga rivalidade contra a herança judaico--cristã, a nossa presença secular e a expansão mundial de ambas2.
Historicamente, a outra grande interacção antagónica da civilização islâmica árabe tem sido com os povos negros do Sul, pagãos, animistas e agora, crescentemente, cristãos. No passado, este antagonismo estava bem espelhado na imagem do árabe mercador de escravos e dos escravos negros. Tem estado reflectido na guerra civil em curso no Sudão entre árabes e negros, na luta no Chade entre os insurrectos apoiados pela Líbia e o governo, nas tensões entre os cristãos ortodoxos e os muçulmanos no corno de África e nos conflitos políticos, nos frequentes tumultos e na violência comunal entre muçulmanos e cristãos na Nigéria. É provável que a modernização da África e a expansão do cristianismo aumentem a probabilidade de violência ao longo desta linha divisória civilizacional. O dis-curso que o papa João Paulo II proferiu em Cartum em Fevereiro de 1993 é sintomático da intensificação deste conflito por ter atacado a acção do governo islamita do Sudão contra a sua minoria cristã.
Na fronteira setentrional do islão, o conflito tem irrompido, cada vez mais, entre povos ortodoxos e muçulmanos, incluindo a carnificina da Bósnia e de Serajevo, a ebulição da violência entre Sérvios e Albaneses, as frágeis relações entre Búlgaros e a sua minoria turca, a violência entre Ossetas e Inguches, o interminável massacre mútuo de Arménios e de Azeris, as relações tensas entre Russos e muçulmanos na Ásia central e o posicionamento de tropas russas para proteger interesses russos no Cáucaso e na Ásia central. A religião reforça o renascimento das identidades étnicas e estimula os receios russos acerca da segurança das suas fronteiras meridionais. Esta preocupação foi bem captada por Archie Roosevelt:
Grande parte da história russa ocupa-se da luta entre os povos eslavos e turcos nas suas fronteiras, que data do tempo da fundação do Estado russo, que ocorreu há mais de um milénio. No confronto milenar dos eslavos com os seus vizinhos do Leste jaz a chave para a compreensão não só da história da Rússia, como também do carácter do seu povo. Para compreender as realidades russas de hoje há que ter conhecimento do conceito do grande grupo étnico turco que preocupou os Russos ao longo dos séculos3.
O conflito das civilizações está profundamente enraizado em qual- quer parte da Ásia. O confronto histórico entre muçulmanos e hindus no subcontinente indiano manifesta-se não só na rivalidade entre o Paquistão e a Índia, mas também na intensificação da luta religiosa no interior deste último país entre os cada vez mais numerosos grupos militan- tes hindus e a considerável minoria muçulmana da Índia. A destruição da mesquita de Ayodhya em Dezembro de 1992 levantou a questão de saber se a Índia permanecerá um Estado democrático secular ou se se transformará num Estado hindu. No Extremo Oriente a China tem importantes disputas territoriais com a maior parte dos seus vizinhos. Tem prosseguido uma política impiedosa contra o povo budista do Tibete e está a intensificar uma política semelhante em relação à sua minoria turco-muçulmana. Finda a guerra fria, os subjacentes diferendos entre a China e os Estados Unidos reapareceram em áreas como os direitos humanos, o comércio externo e a proliferação de armamentos. É improvável que estes diferendos se atenuem. Consta que Deng Xiaoping afirmou em 1991 que estava em curso uma «nova guerra fria» entre a China e a América.
O mesmo termo tem sido aplicado às cada vez mais difíceis relações entre o Japão e os Estados Unidos. Aqui as diferenças culturais exacerbam o conflito económico. As pessoas de cada um dos lados acusam-se mutuamente de racismo, mas, pelo menos da parte americana, as antipatias não são raciais, mas culturais. Dificilmente podiam ser mais diferentes os valores básicos, as atitudes e os padrões de comportamento das duas sociedades. As questões económicas entre os Estados Unidos e a Europa não são menos sérias do que entre os Estados Unidos e o Japão, mas não têm a mesma importância política e intensidade emocional, porque as diferenças entre a cultura americana e a europeia são muito menores do que as existentes entre a civilização americana e a japonesa.
As interacções entre civilizações variam grandemente na medida da probabilidade de serem caracterizadas pela violência. A competição económica predomina claramente entre as subcivilizações americana e europeia do Ocidente e a existente entre estas e o Japão. No entanto, a proliferação do conflito étnico no continente euro-asiático, retratado em extremo na «limpeza étnica», não tem acontecido totalmente ao acaso. Tem sido mais frequente e mais violento entre grupos pertencentes a civilizações diferentes. Na Eurásia as grandes fronteiras históricas entre civilizações estão uma vez mais em chamas. Tal é particularmente verdade ao longo das fronteiras em forma de crescente do bloco de nações islâmicas que vai desde a protuberância africana até à Ásia central. A violência também ocorre entre, por um lado, os muçulmanos e, por outro, os Sérvios ortodoxos nos Balcãs, os judeus em Israel, os hindus na Índia, os budistas em Burma e os católicos nas Filipinas. O islão tem fronteiras sangrentas.
O agrupamento civilizacional: a síndrome
dos países-irmãos
Grupos de Estados pertencentes a uma mesma civilização que se envolveram numa guerra com povos de outra civilização tentam, naturalmente, conseguir o apoio dos outros membros da própria civilização. Enquanto evolui o mundo pós-guerra fria, a comunidade civilizacional, que H. D. S. Greenway intitulou de «síndrome do país-irmão», está a substituir as considerações relacionadas com a ideologia política e o tradicional equilíbrio de poderes como a principal base para a cooperação e coligações. Pôde assistir-se, gradualmente, ao seu aparecimento nos conflitos pós-guerra fria no golfo Pérsico, no Cáucaso e na Bósnia. Nenhum deles foi uma grande guerra entre civilizações, mas cada um deles continha alguns elementos do agrupamento civilizacional que pareceram tornar-se mais importantes à medida que o conflito continuava e que pode fornecer a amostra do futuro.
Em primeiro lugar, na guerra do Golfo, um Estado árabe invadiu outro, tendo-se formado depois uma coligação de Estados árabes, ocidentais e outros. Enquanto um pequeno número de governos muçulmanos apoiava abertamente Saddam Hussein, muitas elites árabes elogiavam-no em privado, sendo altamente popular entre vastos sectores das populações árabes. Os movimentos fundamentalistas islâmicos apoiaram mais o Iraque do que os governos do Koweit e da Arábia Saudita, apoiados pelo Ocidente. Saddam Hussein, pondo de lado o nacionalismo árabe, lançou explicitamente um apelo islâmico. Ele e os seus apoiantes tentaram caracterizar a guerra como uma guerra entre civilizações. «Não é o mundo contra o Iraque», como declarou Safar Al-Hawali, deão dos Estudos Islâmicos na Universidade Umm Al-Qura, em Meca, numa gravação que circulou amplamente pelo mundo, «é o Ocidente contra o islão.» O principal líder religioso iraniano, ignorando a rivalidade entre o Irão e o Iraque, convocou uma guerra santa contra o Ocidente: «A luta contra a agressão, a avidez, os planos e a política americanos será considerada uma jihad e quem for morto nesse caminho será um mártir.» «Esta é uma guerra», declarou o rei Hussein da Jordânia, «contra todos os árabes e todos os muçulmanos e não apenas contra o Iraque».
O agrupamento de consideráveis fracções de elites e de populações árabes em volta de Saddam Hussein obrigou os governos árabes envolvidos na coligação anti-Iraque a moderarem as suas actividades e a atenuarem as suas declarações públicas. Os governos árabes opuseram-se ou distanciaram-se dos esforços ocidentais subsequentes para exercerem pressão sobre o Iraque, incluindo a imposição de uma zona de interdição aérea no Verão de 1992 e o bombardeamento do Iraque em Janeiro de 1993. A coligação ocidental-soviética-turca-árabe anti-Iraque de 1990 tornou-se, em 1993, praticamente uma coligação do Ocidente e do Koweit contra o Iraque.
Os muçulmanos comparavam as acções ocidentais contra o Iraque com a incapacidade de proteger os Bósnios dos Sérvios ou com a imposição de sanções a Israel pelas violações das resoluções das Nações Unidas. Alegavam que o Ocidente estava a usar duas medidas. No entanto, um mundo de civilizações em choque é, inevitavelmente, um mundo de duas medidas: as pessoas aplicam uma medida aos países-irmãos e uma medida diferente aos outros.
Em segundo lugar, a síndrome do país-irmão também apareceu nos conflitos da antiga União Soviética. Os sucessos militares arménios em 1992 e 1993 estimularam a Turquia a tornar-se cada vez mais apoiante dos seus irmãos de religião, etnia e língua do Azerbaijão. «Temos uma nação turca que tem os mesmos sentimentos que os azeris», disse um funcionário turco em 1992. «Estamos sob pressão. Os nossos jornais estão cheios de fotografias de atrocidades e perguntam-nos se ainda estamos a tomar a sério a continuação da nossa política de neutralidade. Talvez pudéssemos mostrar à Arménia que existe uma grande Turquia na região.» O presidente Turgut Özal concordou, observando que a Turquia devia, pelo menos, «assustar um pouco os Arménios». A Turquia, ameaçou Özal de novo em 1993, deveria «mostrar os seus dentes». Jactos da Força Aérea turca fizeram voos de reconhecimento ao longo da fronteira arménia; a Turquia interrompeu os carregamentos de comida e os voos para a Arménia; a Tur-quia e o Irão anunciaram que não aceitariam o desmembramento do Azerbaijão. Nos últimos anos da sua existência, o governo soviético apoiou o Azerbaijão porque o governo era dominado por antigos comunistas. No entanto, com o fim da União Soviética, as considerações políticas deram lugar às religiosas. As tropas russas lutaram ao lado dos Arménios e o Azerbaijão acusou «o governo russo de rodar 180 graus» em relação ao apoio dado à Arménia cristã.
Em terceiro lugar, no que diz respeito às lutas na ex-Jugoslávia, a opi-nião pública ocidental mostrou simpatia e apoio aos muçulmanos Bósnios pelos horrores que sofreram às mãos dos Sérvios. No entanto, foi manifestada pouca preocupação pelos ataques desencadeados pelos Croatas contra os muçulmanos e pelo seu papel no desmembramento da Bósnia--Herzegovina. A Alemanha, nas primeiras fases da fragmentação jugoslava, numa pouco habitual exibição de iniciativa e músculo diplomáticos, convenceu os outros onze membros da Comunidade Europeia a seguirem o seu exemplo, reconhecendo a Eslovénia e a Croácia. Como consequência da determinação do Papa em proporcionar uma forte ajuda aos dois países católicos, o Vaticano procedeu ao seu reconhecimento ainda antes de a Comunidade o ter feito. Os Estados Unidos seguiram o exemplo europeu. Deste modo, os principais actores da civilização ocidental congregaram--se por detrás dos seus correligionários. Foi noticiado, posteriormente, que a Croácia estava a receber consideráveis quantidades de armamento da Europa central e de outros países ocidentais. Por outro lado, o governo de Boris Ieltsine tentou seguir uma via intermédia em que, sendo simpático com os Sérvios ortodoxos, não alienasse a Rússia do Ocidente. No entanto, os russos conservadores e os grupos nacionalistas, incluindo muitos legisladores, atacaram o governo por não ser mais rápido a apoiar os Sér-vios. Em princípios de 1993 havia várias centenas de russos, aparentemente, a servir nas forças sérvias e circulavam notícias de que estavam a ser fornecidas armas russas à Sérvia.
Por outro lado, governos e grupos islâmicos criticavam o Ocidente por não ir em socorro dos Bósnios. Os dirigentes políticos iranianos apelavam aos muçulmanos de todos os países para que oferecessem ajuda à Bósnia; o Irão forneceu armas e homens aos Bósnios, violando o embargo de armas das Nações Unidas; grupos libaneses, apoiados pelo Irão, enviaram guerrilhas para treinar e organizar as forças bósnias. Circularam notícias de que em 1993 havia 4000 muçulmanos, de cerca de duas dúzias de países islâmicos, a lutar na Bósnia. Os governos da Arábia Saudita e de outros países foram sujeitos a uma crescente pressão de grupos fundamentalistas nas suas próprias sociedades para que fornecessem um apoio mais vigoroso aos Bósnios. Em finais de 1992 foi noticiado que a Arábia Saudita tinha fornecido importantes fundos para a aquisição de armas e abastecimentos aos Bósnios, o que lhes permitiu aumentar a sua capacidade militar perante os Sérvios.
Nos anos 30 a guerra civil espanhola provocou a intervenção de países que, politicamente, eram fascistas, comunistas e democráticos. Nos anos 90 o conflito jugoslavo está a provocar a intervenção de países que são muçulmanos, ortodoxos e cristãos ocidentais. O paralelismo não passou despercebido. «A guerra na Bósnia-Herzegovina tornou-se o equivalente emocional da luta contra o fascismo na guerra civil espanhola», observou um editor saudita. «Aqueles que morreram são olhados como mártires que tentaram salvar os seus irmãos muçulmanos.»
Também ocorrem conflitos e violência entre Estados e grupos pertencentes à mesma civilização. No entanto, é provável que tais conflitos sejam menos intensos e com menor probabilidade de expansão do que os conflitos entre civilizações. O facto de pertencerem a uma mesma civilização reduz a probabilidade de violência que noutras condições ocorreria. Em 1991 e 1992 muita gente estava alarmada pela possibilidade de um conflito violento entre a Rússia e a Ucrânia por causa do território, principalmente o da Crimeia, da frota do mar Negro, das armas nucleares e das questões económicas. No entanto, se o que conta é a civilização, a probabilidade de violência entre Ucranianos e Russos deve ser baixa. Ambos os povos são eslavos, predominantemente ortodoxos, e têm mantido um relacionamento estreito há muitos séculos. De facto, logo em princípios de 1993, apesar de todas as razões para o conflito, os dirigentes políticos dos dois países estavam efectivamente a negociar e a despoletar as questões existentes entre os dois países. Enquanto houve combates pesados entre muçulmanos e cristãos em muitas partes da antiga União Soviética e muita tensão e algumas lutas entre cristãos ocidentais e ortodoxos nos Estados bálticos, não se verificou praticamente qualquer violência entre Russos e Ucranianos.
O agrupamento civilizacional, até à data, tem sido limitado, mas tem estado a progredir e contém, nitidamente, potencial para se expandir muito mais. À medida que os conflitos no golfo Pérsico, no Cáucaso e na Bósnia continuavam, as posições das nações e as clivagens entre elas foram aumentando ao longo dos limites civilizacionais. Políticos populistas, dirigentes religiosos e os meios de comunicação social encontraram um potente meio para arregimentarem o apoio das massas e pressionarem os governos hesitantes. Nos próximos anos os conflitos locais com maior possibilidade de degenerarem em guerras maiores serão aqueles que se travam ao longo das fronteiras civilizacionais, como o da Bósnia e o do Cáucaso. A próxima guerra mundial, se ocorrer, será uma guerra entre civilizações.
O Ocidente contra o resto
O Ocidente está, actualmente, num pico de poder em relação às outras civilizações. A outra superpotência sua opositora desapareceu do mapa. Os conflitos militares entre Estados ocidentais são impensáveis e o poder militar ocidental não tem rival. O Ocidente não encontra desafio económico à altura, excepto o do Japão. Domina as instituições políticas e de segurança internacionais e, com o Japão, as instituições económicas internacionais. As questões globais de política e de segurança são, efectivamente, resolvidas por um directório constituído pelos Estados Unidos, pela Grã-Bretanha e pela França, e as questões económicas mundiais por um directório formado pelos Estados Unidos, pela Alemanha e pelo Japão, os quais mantêm relações extraordinariamente estreitas entre si, das quais são excluídos os Estados mais pequenos e maioritariamente não ocidentais. As decisões tomadas no Conselho de Segurança das Nações Unidas ou no Fundo Monetário Internacional reflectem os interesses do Ocidente, apresentados ao mundo como reflectindo os interesses da comunidade in-ternacional. A própria frase «comunidade internacional» tornou-se o eufemístico nome colectivo (substituindo «mundo livre») para dar legitimidade global às acções que reflectem os interesses dos Estados Unidos e de outras potências ocidentais4. O Ocidente promove os seus interesses económicos e impõe às outras nações as políticas económicas que julga apropriadas através do FMI e de outras instituições económicas internacionais. Em qualquer sondagem feita em povos não ocidentais o FMI ganharia, indubitavelmente, o apoio dos ministros das finanças e de poucos mais, mas alcançaria uma votação esmagadoramente desfavorável de quase todos os outros, que concordam com a caracterização feita por Georgy Arbatov de os funcionários do FMI serem «neobolcheviques que adoram ficar com o dinheiro dos outros, impondo regras de conduta económica e política, não democráticas e estranhas, que sufocam a liberdade económica».
O domínio ocidental do Conselho de Segurança da ONU e das suas decisões, moderado somente pela abstenção ocasional da China, provocou a legitimação das Nações Unidas para o uso da força pelo Ocidente para expulsar o Iraque do Koweit e para a eliminação das armas sofisticadas do Iraque e da sua capacidade para produzir tal tipo de armas. Também produziu a acção sem precedentes dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da França de levarem o Conselho de Segurança a exigir que a Líbia entregasse os suspeitos do atentado ao avião do voo da Pan Am 103 e de imporem sanções quando a Líbia recusou. Depois de derrotar o maior exército árabe o Ocidente não hesitou em lançar o seu poder sobre o mundo árabe. Com efeito, o Ocidente está a usar as instituições internacionais, o poder militar e os recursos económicos para gerir o mundo de modo a manter o predomínio ocidental, a proteger os interesses ocidentais e a promover os valores políticos e económicos ocidentais.
Pelo menos, é desta forma que os não ocidentais vêem o novo mundo e há muito de verdade na sua visão. Deste modo, as diferenças de poder e as lutas pelo poder militar, económico e institucional são uma fonte de conflitos entre o Ocidente e as outras civilizações. As diferenças de cultura, isto é, crenças e valores básicos, são uma segunda fonte de conflito. V. S. Naipaul tem argumentado que a civilização ocidental é uma «civilização universal» «ajustada a todos os homens». De facto, a um nível superficial, grande parte da cultura tem-se espalhado pelo resto do mundo. No entanto, a um nível mais básico, os conceitos ocidentais diferem profundamente dos prevalecentes nas outras civilizações. As ideias ocidentais de individualismo, liberalismo, constitucionalismo, direitos humanos, igualdade, liberdade, primado da lei, democracia, mercado livre, separação da Igreja do Estado, têm, frequentemente, pouca ressonância nas culturas islâmica, confucionista, japonesa, hindu, budista ou ortodoxa. Os esforços ocidentais para propagarem tais ideias produzem antes uma reacção contra o «imperialismo dos direitos humanos» e a reafirmação dos direitos indígenas, como pode ser visto no apoio aos fundamentalismos religiosos pelas gerações mais jovens das culturas não ocidentais. A própria noção de poder haver uma «civilização universal» é uma ideia ocidental, imediatamente em choque com o particularismo de grande parte das sociedades asiáticas e da ênfase que colocam naquilo que distingue um povo de outro. Com efeito, o autor de uma análise de 100 estudos comparados de valores em diferentes sociedades concluiu que «os valores mais importantes no Ocidente são os de menor importância no resto do mundo»5. Claro está que na esfera política estas diferenças são mais manifestas nos esforços que os Estados Unidos e outras potências ocidentais desenvolvem para induzirem os outros povos a adoptarem as ideias ocidentais que dizem respeito à democracia e aos direitos humanos. O governo democrático moderno teve origem no Ocidente. Quando desenvolvido em sociedades não ocidentais, tem normalmente sido o produto do colonialismo ou de imposição ocidental.
É provável que, no futuro, o eixo central da política mundial seja, na expressão de Kishore Mahbubani, o conflito entre «o Ocidente e o resto» e as respostas das civilizações não ocidentais ao poder e aos valores ocidentais6. Geralmente, estas respostas utilizam uma de três formas ou uma combinação delas. Num extremo, os Estados não ocidentais podem, como é o caso de Burma ou da Coreia do Norte, tentar seguir um percurso soli-tário, isolando as suas sociedades de qualquer penetração ou «corrupção» pelo Ocidente, e excluir-se de participarem na comunidade global dominada pelo Ocidente. No entanto, os custos desta opção são elevados e poucos Estados a têm seguido em exclusivo. Uma segunda alternativa, o equivalente ao seguidismo* na teoria das relações internacionais, consiste em tentar seguir o Ocidente e aceitar os seus valores e instituições. A ter-ceira alternativa tenta equilibrar o poderio ocidental, desenvolvendo o poder económico e militar e cooperando com outras sociedades não ocidentais contra o Ocidente, enquanto preserva os valores e instituições indígenas; em resumo, modernizar, mas não ocidentalizar.
Países dilacerados**
No futuro, enquanto as pessoas se diferenciarão pelas civilizações, os países com grande número de povos de civilizações diferentes, como a União Soviética e a Jugoslávia, serão candidatos ao desmembramento. Alguns outros países têm um claro grau de homogeneidade cultural, mas estão divididos sobre a questão de a sua sociedade pertencer a uma civilização ou a outra. Estes são países dilacerados. Os seus dirigentes políticos desejam, tipicamente, seguir uma estratégia seguidista e tornam os seus países membros do Ocidente, mas a história, a cultura e as tradições desses países são não ocidentais. A Turquia é o protótipo mais óbvio de um país dilacerado. Os dirigentes políticos turcos de finais do século xx têm seguido a tradição de Ataturk e definido o país como um Estado-nação moderno, secular e ocidental. Aliaram a Turquia ao Ocidente na NATO e na guerra do Golfo; requereram o estatuto de membro da Comunidade Europeia. No entanto, ao mesmo tempo, outros elementos da sociedade turca têm apoiado um ressurgimento islâmico e argumentam que a Turquia é, basicamente, uma sociedade muçulmana do Médio Oriente. Além disso, embora a elite da Turquia tenha definido o país como uma sociedade ocidental, a elite do Ocidente recusa aceitá-la como tal. A Turquia não se tornará membro da Comunidade Europeia e a verdadeira razão, como disse o presidente Özal, «é que nós somos muçulmanos e eles são cristãos, mas isso não dizem». Tendo rejeitado Meca e tendo sido rejeitada por Bruxelas, para onde olha a Turquia? Tashkent pode ser a resposta. O fim da União Soviética dá à Turquia a oportunidade de se tornar líder de uma civilização turca renascida que englobe sete países desde a fronteira da Grécia à da China. A Turquia, encorajada pelo Ocidente, está a desenvolver esforços enérgicos para criar esta nova identidade para si própria.
Durante a passada década o México assumiu uma posição de certo modo semelhante à da Turquia. Tal como este país abandonou a sua oposição histórica à Europa e tentou juntar-se a ela, o México parou de se definir pela sua oposição aos Estados Unidos e, em vez disso, tentou imitar este país e aderir à NAFTA*. Os dirigentes políticos mexicanos estão empenhados na imensa tarefa de redefinirem a identidade mexicana e têm introduzido reformas económicas fundamentais que, eventualmente, conduzirão a uma mudança política fundamental. Em 1991 um dos principais conselheiros políticos do presidente Carlos Salinas de Gortari descreveu--me extensamente todas as mudanças que o governo de Salinas estava a fazer. Quando acabou, comentei: «Isso é extremamente impressionante. Basicamente, parece-me que pretendem transformar o México de um país latino-americano num país norte-americano.» Ele olhou para mim surpreendido e exclamou: «Exactamente! É precisamente o que estamos a tentar fazer, mas, claro está, nunca poderemos dizê-lo publicamente.» Como o seu comentário indicou, quer no México, quer na Turquia, um significativo número de elementos da sociedade resiste à redefinição da identidade do seu país. Na Turquia os líderes de orientação pró-europeia têm feito certos gestos na direcção do islão (a peregrinação de Özal a Meca); do mesmo modo os líderes de orientação norte-americana têm de fazer certos gestos na direcção dos que pretendem manter o México como país latino--americano (a cimeira ibero-americana de Salinas em Guadalajara).
A Turquia tem sido, historicamente, o país mais profundamente dilacerado. Para os Estados Unidos, o México é o país dilacerado mais imediato. A Rússia é, globalmente, o país dilacerado mais importante. A questão de saber se a Rússia é parte do Ocidente ou líder da civilização eslavo-orto-doxa tem sido um debate recorrente na história russa. Esta questão foi ocultada pela vitória comunista na Rússia, que importou uma ideologia ocidental, adaptada às condições russas, tendo, posteriormente, desafiado o Ocidente em nome dessa ideologia. A dominação do comunismo cortou o debate histórico sobre ocidentalização versus russificação. Com o comunismo desacreditado, os Russos enfrentam de novo esta questão.
O presidente Ieltsine está a adoptar princípios e objectivos ocidentais e a procurar transformar a Rússia num país «normal» e parte do Ocidente. Contudo, a elite e a opinião pública russas estão divididas acerca desta questão. Sergei Stankevich, entre os mais moderados discordantes, argumenta que a Rússia devia rejeitar a via «atlantista», que a encaminharia «a tornar-se europeia, a tornar-se parte da economia mundial de uma forma rápida e organizada, a tornar-se o oitavo membro dos sete e a colocar uma ênfase particular na Alemanha e nos Estados Unidos como os dois membros dominantes da Aliança Atlântica». Todavia, embora também rejeitando uma política exclusivamente euroasiática, Stankevich defende que a Rússia devia dar prioridade à protecção dos russos noutros países, enfatizando as suas ligações turcas e muçulmanas e promovendo «uma considerável redistribuição dos nossos recursos, das nossas opções, dos nossos laços e dos nossos interesses em favor da Ásia, na direcção oriental». As pessoas desta opinião criticam Ieltsine por subordinar os interesses russos aos do Ocidente, por reduzir a capacidade militar russa, por falhar no apoio aos amigos tradicionais, como a Sérvia, e por empurrar a reforma política e económica em termos injuriosos para o povo russo. Um indicativo desta tendência é a nova popularidade das ideias de Petr Savitsky, que, nos anos 20, argumentava que a Rússia era a única civilização euro-asiática7. Existem vozes discordantes muito mais extremistas que advogam pontos de vista abertamente nacionalistas, antiocidentais e anti-semitas e pedem insistentemente que a Rússia desenvolva o seu poder militar e estabeleça laços mais estreitos com a China e com os países muçulmanos. A população da Rússia está tão dividida quanto as suas elites. Uma sondagem realizada na Rússia europeia na Primavera de 1992 revelou que 40% da opinião pública tinha atitudes positivas em relação ao Ocidente e que 36% tinha atitudes negativas. A Rússia, como tem acontecido durante largos períodos da sua história, em princípios dos anos 90, é verdadeiramente um país dilacerado.
Para redefinir a sua identidade civilizacional, um país dilacerado deve satisfazer três requisitos. Em primeiro lugar, a sua elite política e económica tem de ser, de um modo geral, apoiante e entusiástica deste movimento. Em segundo, a sua opinião pública tem de mostrar vontade acerca desta redefinição. Em terceiro, os grupos dominantes na civilização recipiente têm de mostrar vontade de abraçar o convertido. Os três requisitos existem, em grande parte, no que diz respeito ao México. Os dois primeiros, em grande parte, existem no respeitante à Turquia. Não é muito claro se existirá algum deles no que concerne à adesão da Rússia ao Ocidente. O conflito entre a democracia liberal e o marxismo-leninismo foi um con-flito entre ideologias que, apesar das suas grandes diferenças, partilhavam metas derradeiras de liberdade, igualdade e prosperidade. Uma Rússia tradicional, autoritária e nacionalista podia ter objectivos bem diferentes. Um democrata ocidental podia manter um debate intelectual com um soviético marxista. Seria virtualmente impossível fazê-lo com um russo tradicionalista. Se os Russos deixarem de se comportar como marxistas, mas rejeitarem a democracia liberal e começarem a comportar-se como russos e não como ocidentais, as relações entre a Rússia e o Ocidente poderão, de novo, tornar-se distantes e conflituosas.
A ligação islâmico-confucionista
Os obstáculos para que países não ocidentais se unam ao Ocidente variam consideravelmente. São menores para os países latino-americanos e da Europa de Leste. São maiores para os países ortodoxos da antiga União Soviética. São ainda maiores para as sociedades muçulmanas, confucionistas, hindus e budistas. O Japão colocou-se numa posição única de membro associado do Ocidente: está no Ocidente nalguns aspectos, mas não é claramente do Ocidente em dimensões importantes. Aqueles países que por razões de cultura e de poder não desejam, ou não podem, unir-se ao Ocidente entram em competição com ele, desenvolvendo os seus próprios poderes económico, militar e político. Fazem-no promovendo o seu desenvolvimento interno e cooperando com outros países não ocidentais. A forma mais proeminente desta cooperação é a ligação islâmico-confucionista, que surgiu para desafiar os interesses, valores e poder ocidentais.
Os países ocidentais, quase sem excepção, estão a reduzir o seu poder militar; o mesmo acontece com a Rússia sob a liderança de Ieltsine. No entanto, a China, a Coreia do Norte e vários Estados do Médio Oriente estão a expandir significativamente as suas capacidades militares. Estão a fazê-lo quer importando armamento de fontes ocidentais e não ocidentais, quer desenvolvendo indústrias de armamento nacionais. Uma consequência é a emergência do que Charles Krauthammer denominou de «Estado-arma», mas os Estados-armas não são Estados ocidentais. Outra consequência é a redefinição do controle de armamentos, que é um conceito ocidental e um objectivo ocidental. Durante a guerra fria, a principal finalidade do controle de armamentos consistia em estabelecer um equilíbrio militar estável entre os Estados Unidos e os seus aliados e a União Soviética e os seus aliados. No mundo pós--guerra fria a principal finalidade do controle de armamentos é impedir o desenvolvimento em sociedades não ocidentais de capacidades militares que possam ameaçar os interesses ocidentais. O Ocidente procura fazê-lo através de acordos internacionais, pressão económica e controle da exportação de armamentos e de transferência de tecnologia.
O conflito entre o Ocidente e os Estados islâmico-confucionistas está focado principalmente, embora não exclusivamente, nas armas nucleares, químicas e biológicas, nos mísseis balísticos e noutros meios sofisticados de lançamento e de direcção, nas informações e noutras capacidades electrónicas capazes de atingirem o objectivo. O Ocidente promove a não proliferação como norma universal e os tratados de não proliferação e as respectivas inspecções como forma de concretizar essa norma. Também ameaça com uma panóplia de sanções contra aqueles que promovam a disseminação de armas sofisticadas e propõe alguns benefícios para aqueles que o não façam. Naturalmente que a atenção do Ocidente foca-se nas nações que, real ou potencialmente, são hostis ao Ocidente.
Por outro lado, as nações não ocidentais reivindicam o direito de adquirirem e de posicionarem qualquer tipo de armas que julguem necessárias para a sua segurança. Também interiorizaram completamente a verdade da resposta do ministro da Defesa indiano quando lhe foi perguntado que lição tinha retirado da guerra do Golfo: «Os Estados Unidos só podem ser combatidos por quem possua armas nucleares.» As armas nucleares e quí-micas e os mísseis são vistos, talvez erroneamente, como o potencial igua-lizador do superior poder convencional do Ocidente. A China já possui, com certeza, armas nucleares; o Paquistão e a Índia têm capacidade para as posicionarem. A Coreia do Norte, o Irão, o Iraque, a Líbia e a Argélia parecem estar a tentar adquiri-las. Um funcionário superior iraniano declarou que todos os Estados muçulmanos deveriam adquirir armas nucleares, tendo, em 1988, sido noticiado que o presidente do Irão difundiu uma directiva apelando ao desenvolvimento de «armas ofensivas e defensivas químicas, biológicas e radiológicas».
De importância crucial para o desenvolvimento de capacidades militares antiocidentais é a sustentada expansão do poder militar da China e dos seus próprios meios para criar poder militar. A China, confiante no seu espectacular desenvolvimento económico, está a aumentar rapidamente as suas despesas militares e a seguir com vigor a modernização das suas forças armadas. Está a adquirir armas aos antigos Estados da União Soviética; está a desenvolver mísseis de longo alcance; em 1992 testou um engenho nuclear de 1 megatonelada. Está a desenvolver a sua capacidade de projecção de poder, a adquirir tecnologia de reabastecimento aéreo e a tentar comprar um navio porta-aviões. O seu crescimento militar e a sua determinação sobre a soberania do mar do Sul da China estão a provocar uma multilateral e regional corrida aos armamentos no Extremo Oriente. A China é também um grande exportador de armamento e de tecnologia militar. Tem exportado para a Líbia e para o Iraque materiais que poderiam ser usados para fabricar armas nucleares e gás de nervos. Tem ajudado a Argélia a construir um reactor ajustado à investigação e à produção de armas nucleares. A China tem vendido ao Irão tecnologia nuclear que os especialistas americanos acreditam que só podia ser usada para o fabrico de armas e, aparentemente, tem exportado componentes de mísseis com um alcance de 500 km para o Paquistão. A Coreia do Norte tem em curso, há já algum tempo, um programa de armamento nuclear e tem vendido mísseis avançados e a respectiva tecnologia à Síria e ao Irão. O fluxo de armas e de tecnologia de armamento tem-se verificado, em geral, do Extremo Oriente para o Médio Oriente. No entanto, há alguns movimentos em sentido contrário: a China tem recebido mísseis Stinger do Paquistão.
Surgiu uma ligação militar islâmico-confucionista concebida para promover a aquisição pelos seus membros de armas ou tecnologias de armamento necessárias para se opor ao poder militar do Ocidente. Aquela ligação pode ser ou não duradoura. Todavia, actualmente, é, como disse Dave McCurdy, «um pacto de ajuda mútua de ‘renegados’, gerido pelos proliferadores e seus apoiantes». Está, assim, a verificar-se uma nova forma de competição no campo dos armamentos entre os Estados islâmico--confucionistas e o Ocidente. Numa corrida armamentista à moda antiga cada parte desenvolvia as suas próprias armas para equilibrar ou alcançar a superioridade em relação à outra parte. Nesta nova edição de competição armamentista, enquanto um lado está a desenvolver as suas armas, o outro está a tentar, não o equilíbrio, mas a limitação e o impedimento de que o crescimento se verifique, procurando, simultaneamente, a redução das suas capacidades militares.
Implicações para o Ocidente
Este artigo não defende que as identidades civilizacionais substituirão todas as outras identidades, que os Estados-nações desaparecerão, que cada civilização se tornará uma única entidade política coerente, que os grupos dentro de uma civilização não entrarão em conflito ou virão mesmo a lutar uns com outros. Este ensaio avança com hipótese: as diferenças entre civilizações são reais e importantes; a consciência civilizacional está a aumentar; o conflito entre civilizações suplantará o ideológico e outros tipos de conflito e será a sua forma global dominante; as relações internacionais, historicamente um jogo do campo da civilização ocidental, desocidentalizar-se-ão cada vez mais e tornar-se-ão um jogo em que as civilizações não ocidentais serão actores e não simplesmente objectos; será mais provável que instituições políticas, de segurança e económicas de sucesso se desenvolvam no interior das civilizações e não entre elas; os conflitos entre grupos de civilizações diferentes serão mais frequentes, mais apoiados e mais violentos do que os conflitos entre grupos da mesma civilização; os conflitos violentos entre grupos de civilizações diferentes serão a mais provável e mais perigosa origem de escalada para guerras globais; o mais importante eixo da política mundial será o das relações entre «o Ocidente e o resto»; em alguns países dilacerados não ocidentais as elites tentarão fazer com que esses países façam parte do Ocidente, mas na maioria dos casos enfrentarão grandes obstáculos à sua concretização; o foco central do conflito no futuro imediato será entre o Ocidente e vários Estados islâmico-confucionistas.
Tudo isto não advoga o desejo de conflitos entre civilizações. Avança com hipóteses descritivas do que poderá vir a ser o futuro. No entanto, se forem hipóteses plausíveis, é necessário considerar as suas implicações para a política ocidental. Estas implicações podiam e deviam ser divididas entre vantagens de curto prazo e compromissos de longo prazo. No curto prazo é claramente do interesse do Ocidente: promover uma maior cooperação e unidade dentro da sua civilização, principalmente entre as componentes europeia e norte-americana; incorporar no Ocidente as sociedades da Europa de Leste e da América Latina, cujas culturas são próximas das do Ocidente; promover e manter relações de cooperação com a Rússia e o Japão; impedir a escalada de conflitos locais intercivilizacionais em grandes guerras desse mesmo tipo; limitar o aumento do poder militar dos Estados islâmicos e confucionistas; moderar a redução das capacidades militares ocidentais e manter a superioridade militar no Sueste asiático e no Extremo Oriente; explorar as diferenças e os conflitos entre Estados confucionistas e islâmicos; apoiar os grupos simpatizantes dos valores e interesses ocidentais existentes nas outras civilizações; fortalecer as instituições internacionais que reflictam e legitimem os interesses e valores ocidentais e promovam o envolvimento de Estados não ocidentais naquelas instituições.
A longo prazo, outras medidas deveriam ser tomadas. A civilização ocidental é, simultaneamente, ocidental e moderna. As civilizações não ocidentais têm tentado tornar-se modernas sem se tornarem ocidentais. Até à data apenas o Japão conseguiu ter pleno sucesso nessa procura. As civilizações não ocidentais continuarão a tentar adquirir riqueza, tecnologia, proficiência, maquinaria e armamento, que fazem parte do estatuto de ser moderno. Tentarão também conciliar essa modernidade com a sua cultura e valores tradicionais. Os seus poderes económico e militar aumentarão em relação aos do Ocidente. Donde o Ocidente terá de se acomodar cada vez mais a estas civilizações modernas não ocidentais cujo poder se aproxima do seu, mas em que os valores e interesses diferem significativamente dos do Ocidente. Tal requererá que o Ocidente mantenha os poderes económico e militar necessários para proteger os seus interesses em relação aos dessas civilizações. No entanto, tal também requererá que o Ocidente desenvolva uma compreensão mais profunda dos pressupostos religiosos e filosóficos básicos subjacentes às outras civilizações e do modo como as pessoas dessas civilizações vêem os seus interesses. Tal requererá um esforço para identificar os elementos comuns existentes nas civilizações ocidentais e nas outras. No futuro que importa não haverá uma civilização universal, mas antes um mundo de civilizações diferentes, cada uma das quais terá de aprender a coexistir com as outras.
No comments:
Post a Comment